A boa safra de Soderbergh no streaming

Faz um bom tempo que Steven Soderbergh não lança um daqueles filmaços. Em 2001, Erin Brockovich e Traffic concorreram, juntos, a dez Oscars. O primeiro rendeu a estatueta de melhor atriz para Julia Roberts e o segundo venceu em quatro categorias, inclusive a de melhor diretor. Naquele mesmo ano, o cineasta estreou o badalado Onze Homens e um Segredo, que bateu os US$ 450 milhões na bilheteria mundial e teve duas continuações.

Acertos como a saga Che (2008) e Contágio (2011) valem ser lembrados, mas quem quiser acompanhar o melhor de sua carreira recente deve migrar para a telinha. Em 2020, Soderbergh fechou contrato de três anos para produzir conteúdo exclusivo para HBO Max e HBO. A minissérie Círculo Fechado é a novidade dessa safra, que inclui a comédia dramática Let Them All Talk (2020), estrelada por Meryl Streep, o noir Nem um Passo em Falso (2021), que reúne Benicio Del Toro e Don Cheadle, e o “pandêmico” thriller Kimi (2022), com Zoë Kravitz.

Confira a seguir a Lista Especial com as críticas e atalhos para assistir a esse eclético quarteto.

Círculo Fechado / Full Circle

Criada por Ed Solomon (roteirista de Truque de Mestre) e dirigida por Steven Soderbergh, Círculo Fechado, minissérie da HBO Max, é inspirada no clássico de Akira Kurosawa, Céu e Inferno (1963). São seis episódios, com uma quantidade incomum de reviravoltas. Drama familiar e suspense policial se encaixam bem em uma trama engajada socialmente e com instigantes toques místicos.

Meio canastrão, Dennis Quaid (Fé nas Alturas) é Jeff, o patriarca do clã McCusker, que fez fortuna no ramo culinário. Não fica muito claro como ele se tornou um chef tão renomado. O que interessa é que, em um passado não muito distante, a família esteve envolvida com terras na Guiana, na América do Sul, onde seria construído um luxuoso condomínio residencial. Esse é o elo com o clã Mahabir, formado por imigrantes guianeses que agem no submundo de Nova York sob o comando de Savitri, a matriarca interpretada com sangue nos olhos por CCH Pounder (NCIS: Nova Orleans).

Para realizar um ritual e quebrar uma suposta maldição, Savitri encomenda o sequestro do neto adolescente de Jeff, filho do casal formado por Sam (Claire Danes, de A Nova Vida de Toby) e Derek (Timothy Olyphant, de Amsterdam). A preparação e execução do crime envolve um grupo de jovens guianeses, entre os quais o ambicioso, mas atrapalhado, Aked (Jharrel Jerone, de Olhos que Condenam). Esse cruzamento entre as gerações é um dos motores bem calibrados de Círculo Fechado.

É a juventude, veja só, pelo menos parte dela, que toma consciência da gravidade da ação e provoca a primeira das muitas guinadas narrativas. Para juntar as pontas e fechar esse círculo de mistérios, entra em cena a obstinada policial Mel (Zazie Beets, de Nove Dias). Também com pendências pessoais a resolver, ela desenvolve uma improvável amizade com Sam, mãe zelosa e executiva atuante à frente dos negócios da família, mas personagem de atitudes dúbias. Outro que tem “segredo” estampado na testa é Derek, o marido que estranhamente titubeia na hora de entregar o resgate aos criminosos.

Fica a sensação de que em oito episódios algumas tramas paralelas poderiam se esclarecer melhor, principalmente detalhes do passado que, no fim das contas, são as raízes dos conflitos no presente. Apesar de soluções simplistas aqui e acolá, Soderbergh dirige com pulso firme e mantém o espectador colado do início ao fim. “Você colhe o que planta”, anuncia o trailer. Digamos que a colheita é farta em Círculo Fechado.

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Kimi: Alguém Está Escutando/Kimi

Pouco antes de brilhar na pele de Mulher-Gato em Batman, Zoë Kravitz mandou bem na telinha sob a batuta de Steven Soderbergh, no thriller Kimi: Alguém Está Escutando, produção da HBO Max. O roteiro de David Koepp (O Quarto do Pânico) explora os transtornos da pandemia de Covid-19 através de uma jovem que sofre de agorafobia, embora não seja só o vírus que a impeça de sair de casa. Seu nome é Angela, e Kimi é a assistente virtual criada pela startup em que trabalha. O fundador se prepara para o IPO, com a promessa de usar o aporte financeiro para tornar o sistema operacional mais avançado que o de concorrentes como Siri e Alexa. Em home office, Angela analisa os áudios para afinar a sintonia com os usuários.

O problema é que ela acredita ter escutado um estupro em uma das gravações, e a trama segue a protagonista nas tentativas de investigar e delatar o suposto crime. Em 1981, Brian De Palma colocou o sonoplasta vivido por John Travolta na mesma sinuca no clássico do suspense Um Tiro na Noite. Deixar a suspeita pra lá ou arriscar a própria pele pela verdade? No caso de Kimi: Alguém Está Escutando ainda há o agravante de a heroína ter de enfrentar as próprias neuroses para ir a campo atrás de respostas. Não tenha dúvida de que as primeiras descobertas a colocam na mira da bandidagem.

Outro atrativo é ver Steven Soderbergh de volta ao cinema independente raiz, com a verve sintética de Sexo, Mentiras e Viteotape – lá se vão 30 anos –, e distante da grandiosidade da franquia Doze Homens e um Segredo. Em menos de 90 minutos, Zoë Kravitz percorre o arco dramático dessa mulher paralisada pelo medo, que precisa aprender a usar o sentimento como força propulsora. A narrativa é frenética no ritmo e nos nervosos movimentos de câmera. Como fã fiel de Hitchcock, o diretor faz bom uso das janelas, nada discretas, para conectar Angela com vizinhos do prédio à frente. Se o jogo de gato e rato não chega a ser novidade, a inserção da trama na realidade pandêmica potencializa o drama.

Máscaras, álcool gel e cabines de desinfecção somam-se ao cenário urbano e dão personalidade ao thriller ambientado em Seattle. Soderbergh eleva a Covid-19 a coadjuvante. Os impactos do isolamento social na saúde mental legitimam o estado psicológico de Angela. Embora concisa, a história ainda cutuca a sempre urgente questão da violência contra a mulher, e abre o debate sobre o quanto engenhocas como a assistente virtual Kimi podem colaborar na luta por justiça.

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Nem um Passo em Falso/No Sudden Move

Quando soube que Don Cheadle (Doze Homens e Outro Segredo) seria o protagonista e Steven Soderbergh o diretor, Benicio Del Toro disse sim a Nem um Passo em Falso sem ler o roteiro do projeto de seu comandante na saga cinematográfica Che (2008). E a chamada para filmar foi em plena pandemia de Covid-19. A eles uniram-se novos e antigos parceiros do cineasta, que revisita o gênero noir em um exercício narrativo e estilístico tão preciso quanto experimental.

Soderbergh e sua trupe foram filmar em Detroit a história escrita por Ed Solomon. O roteirista de franquia Truque de Mestre propõe um novo jogo de aparências, agora nos anos 1950 e na cidade em seus tempos de glória, quando era a capital do automóvel nos Estados Unidos. É ali que os pequenos trapaceiros Curt Goynes (Cheadle) e Ronald Russo (Del Toro) unem-se ao esquentadinho Charley (Kieran Culkin, Scott Pilgrim Contra o Mundo) e ao bonachão Doug Jones (Brendan Fraser, A Baleia) para executar uma missão a mando de um gângster anônimo. E há vários no pedaço, entre eles Frank Capelli (Ray Liotta, História de um Casamento) e Aldrick Watkins (Bill Duke, A Lista). Detalhe: Ronald é amante de Vanessa (Julia Fox, Joias Brutas), a sra. Capelli, e Curt deve uma grana para Watkins.

A tarefa: fazer o contador de uma empresa acessar o cofre do chefe e tirar dali um documento com informações cobiçadas. O plano: tomar a família dele como refém na própria casa, com Curt e Ronald na vigia enquanto Charley vai com o funcionário até a firma. As vítimas são Matt (David Harbour, Viúva Negra), a esposa Mary (Amy Seimetz, Cemitério Maldito), o filho Matthew (Noah Jupe, série The Undoing) e a caçula Peggy (a estreante Lucy Holt). Quem está de olho na estranha movimentação é o policial Joe Finney (Jon Hamm, Nostalgia).

Obviamente, são muitos os passos em falso e nada corre como esperado. Todos têm motivações pessoais para se meter nesse imbróglio em que a regra geral é passar a perna no outro. O constante entra e sai de personagens e a citação de muitos nomes tornam a narrativa embolada, dura de acompanhar. Então a dica é desencanar dos detalhes, já que tudo se explica ao final, e se deixar envolver pelo ambiente e pelas estripulias técnicas do cineasta nessa honraria ao cinema noir.

Além de dirigir, Soderbergh assume a fotografia e a edição, sob os pseudônimos Peter Andrews e Mary Ann Bernard (!), respectivamente. Com a câmera na mão e uma objetiva olho de peixe, ele tira o espectador do conforto com a lente angular em 180º. As imagens se distorcem e se tornam tão suspeitas quanto os personagens. Embora em ordem cronológica, a montagem junta os fatos sem muita lógica, mas com elegância. Soderbergh não é nada didático e exige um público ligado, porque seu filme vai além do exercício visual e narrativo. É um olhar lúcido – e irônico – sobre a ganância e a traição, e o atestado de uma realidade irrefutável: o abismo entre ricos e pobres.

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Let Them All Talk

Meryl Streep interpreta uma romancista vencedora do Pulitzer com bloqueio criativo, que se recusa a pegar avião para receber um prêmio na Inglaterra. Na esperança de que mudar de ares seja inspirador, sua nova agente (Gemma Chan, Duas Rainhas) tem a solução: embarcar no luxuoso transatlântico Queen Mary 2 e, na travessia do Atlântico, brindar os passageiros a bordo com uma palestra. A escritora topa, com uma condição: levar junto o sobrinho (Lucas Hegdes, O Retorno de Ben) e suas duas melhores amigas dos tempos de faculdade (Dianne Wiest, Eu Me Importo, e Candice Bergen, Do Jeito que Elas Querem), as quais não vê há 30 anos.

Let Them All Talk é exatamente o que diz o título, Deixe Todos Eles Falarem em português. O diretor Steven Soderbergh (Nem Um Passo em Falso) e a aclamada contista Deborah Eisenberg não conceberam um roteiro típico. Ela escreveu as linhas gerais de uma história em prosa, eles detalharam o perfil dos protagonistas e fizeram indicações dos arcos dramáticos que cada um deveria percorrer. A partir daí, o desafio do elenco era improvisar os diálogos. O filme foi rodado durante os sete dias de viagem no navio, mais um arremate de três dias em Londres e finito.

A personagem com motivações mais claras é a de Candice Bergen. Há um ranço entre ela e a escritora, que teria se apropriado da vida da amiga para escrever seu maior best-seller, com indiscrições que a prejudicaram profundamente. Esse acerto de contas, porém, é frouxo. Melhores são as conversas das personagens de Candice e Dianne durante jogos de tabuleiros, em que relembram com humor algumas aventuras da juventude, como um caso com professor e um ménage à trois. Já a função de Lucas Hedges é promover a troca entre as gerações.   

Mais instigante é a presença de um passageiro misterioso (John Douglas Thompson, série Mare of Easttown), que o sobrinho da autora flagra saindo toda manhã do quarto dela. Sua identidade é revelada ao final. Nem tudo nesse jogo de improviso flui bem, e não estranha que desavisados sobre o conceito da produção reclamem do descompasso narrativo e mesmo da superficialidade dos personagens. Ainda assim, ponto para Soderbergh por reunir esses três peixes grandes da atuação. Ver as veteranas Meryl, Candice e Dianne em ação é sempre um privilégio.

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