Kate Winslet (A Vingança está na Moda) é protagonista e produtora executiva da minissérie Mare of Easttown, que tem sido aclamada por público e crítica. Deu o que falar sua insistência para que a foto do pôster não fosse retocada e a personagem não usasse maquiagem para disfarçar as rugas, marcas dos seus 45 anos. A postura agradou as defensoras da beleza natural da mulher madura. Houve até comentários sobre o favoritismo das premiações para atrizes que se “enfeiam”, como se Kate Winslet precisasse disso. Ela já tem o Oscar, o Emmy, quatro estatuetas do Globo de Ouro, três prêmios SAG e os outros três BAFTA na estante.
O fato é que a policial detetive Mare Sheehan ficou muito mais genuína sem os adereços e recursos artificiais da estética e da moda, gente como a gente. Ou melhor, como a gente da Pensilvânia, já que a minissérie se passa numa minúscula cidade do interior do Estado, daquelas em que todo mundo se conhece e (acha que) sabe da vida de todo mundo. Quem realmente conhece esse microcosmo é o criador e roteirista Brad Ingelsby (O Caminho de Volta), natural de uma das pequenas cidades da região, onde inclusive toda a minissérie foi filmada.
É admirável como conseguiu, em apenas sete capítulos de cerca de uma hora de duração, criar tantos personagens consistentes, inclusivos, tecê-los em tramas engenhosas, mas verossímeis, mergulhadas em dramas complexos e comoventes. A princípio, tudo gira em torno da investigação do assassinato brutal da jovem mãe solteira Erin (Cailee Spaeny, Maus Momentos no Hotel Royale). O caso pode estar ou não relacionado com o desaparecimento de outras duas garotas locais, mas os três estão sob os cuidados da diligente e durona Mare, com seus olhos de lince e sua dedicação ferrenha. Tão ferrenha que se torna suspeita. Não para a família, amigos, o chefe de polícia e mesmo a cidade, mas para o espectador.
Ingelsby nos atrai para sua ficção como um imã. Enquanto cisca pistas de crimes dos quais nada se sabe, ele desvela a vida de Mare que todos conhecem, menos nós – e sua terapeuta; o detetive Colin Zabel (o ótimo Evan Peters, X-Men: Fênix Negra), que chega para reforçar a investigação; e Richard (Guy Pearce, O Último Vermeer), professor novato na cidade. Com o burburinho da voz da própria Mare quando se apresenta para os “forasteiros”, somado às vozes das pessoas que fazem parte da sua vida, o roteiro preenche os silêncios da protagonista sobre o suicídio do filho, o divórcio, a disputa pela guarda do neto, o pai depressivo, a mãe infeliz.
Seria de se supor, inclusive, que o roteirista, além de se inspirar na própria experiência de cidadão do interior americano, deu uma boa espiadela nas manchetes de notícias. Ingeslby incorporou à história referências de escândalos de abuso por padres, cativeiros domésticos de mulheres, bullying nas redes sociais, tudo que pudesse problematizar a investigação. Mas Mare – e nós – sabe que o criminoso ou os criminosos são da cidade, estão e vivem entre eles. A questão é quão perto ou próximo podem estar ou ser.
No círculo de convivência de Mare, além do compreensivo ex-marido Frank (David Denman, O Quebra-Cabeça) e dos colegas de trabalho, a sororidade impera, ora para suavizar a trama densa, ora para intensificar o drama. Em sua casa, convivem ela, sua mãe Helen (Jean Smart, série Watchmen) e a filha gay Siobhan (Angourie Rice, Damas de Preto). A melhor amiga, Lori (Julianne Nicholson, Monos: Entre o Céu e o Inferno), tem seus próprios problemas para resolver. E o grupo de amigas dos tempos da escola, que inclui Dawn (Enid Graham, As Vidas de Glória), a mãe de uma das garotas desaparecidas, e Beth (Chinasa Ogbuagu), cujo irmão é dependente de drogas como, aliás, grande parte dos personagens jovens.
Craig Zobel (A Caçada) dirige todos os episódios, o que lhes dá unidade dramática e estética raras no gênero. Para isso, conta com a direção de fotografia do requisitado Ben Richardson (Aqueles que me Desejam a Morte), a trilha sonora do italiano Lele Marchitelli (A Grande Beleza), e o acabamento privilegiado do clima frio e dos tons cinza azulados naturais da paisagem. Zobel sabe que dirige um elenco espetacular e deixa a câmera se enamorar de Kate Winslet. Também cultiva a química inacreditável entre a atriz, Julianne Nicholson e Jean Smart. Acima de tudo, porém, o diretor sabe que tem em mãos um roteiro que explora e explode a cultura do “sonho americano” de dentro para fora. Acende o pavio e não deixa pedra sobre pedra.
Trailer
Ficha Técnica
TÃtulo: Mare of Easttown
Direção: Craig Zobel
Duração: 60 minutos
PaÃs de Produção/Ano: EUA, 2021
Elenco: Kate Winslet, Julianne Nicholson, Jean Smart, Angourie Rice, Evan Peters, Guy Pearce, John Douglas Thompson, David Denman, James McArdle, Joe Tippett, Cameron Mann, Jack Mulhern
Distribuição: HBO