Em tempos de radicalismo no politicamente correto, um filme como Eu Me Importo chama atenção por ser fora da curva. Muito fora da curva. Não há alma que preste entre os protagonistas. Talvez o único tipo digno em cena seja um filho desesperado que, logo no início, tenta invadir o asilo em que sua mãe foi internada por determinação da justiça, e a quem não consegue acesso para visitar. Ele se importa. Bem diferente da guardiã legal da idosa, a elegante, sorridente e prestativa Marla Grayson.
Rosamund Pike ganhou o Globo de Ouro de melhor atriz por esse lobo em pele de cordeiro. Diferente da ambígua esposa de Ben Affleck no thriller Garota Exemplar, que lhe rendeu indicação ao Oscar, a atriz britânica entra com os dois pés na caricatura. Marla é dissimulada, impiedosa, sedutora e muito bem organizada. Mancomunada com uma médica igualmente picareta, ela apresenta relatórios forjados que atestam a incapacidade de o idoso cuidar de si mesmo. Aos olhos de um juiz que não deixa claro se é paspalho ou cúmplice, Marla surge como anjo salvador. Como tutora legal, interna o paciente em uma casa de repouso e tem aval jurídico para administrar os bens da vítima a seu bel-prazer.
É uma situação real e revoltante, que poderia render um ótimo thriller dramático. Mas o diretor e roteirista J Blakeson (A 5ª Onda) vai por outro caminho, o do humor negro. O abuso ao idoso está no pano de fundo, e ali fica. O que o cineasta faz em Eu Me Importo é lançar um olhar sarcástico e satírico sobre o atual estado das coisas no jardim do politicamente correto. Sim, porque este é um filme sem mocinhos. Marla e sua amante e braço direito Fran (Eiza González) executam em dois tempos o golpe “perfeito” sobre a milionária senhora Jennifer Peterson (Dianne Wiest), que é retirada contra sua vontade da mansão e isolada na casa de repouso dirigida pelo corrupto Sam (Damian Young).
O olhar debochado da idosa não é bom sinal. O enredo revela que ela é mãe do mafioso russo Roman Lunyov (Peter Dinklage, série Game of Thrones), e o filhote vai transformar a vida de Marla em um inferno para tentar libertar a matriarca. É bandido contra bandido, com doses nada homeopáticas de violência. Repare, porém, na ousadia do diretor: duas lésbicas do mal, uma médica do mal, uma velhinha do mal, um juiz (talvez) do mal, um dono de asilo do mal, e um anão (o gângster) do mal. J Blakeson subverte sem dó o universo do politicamente correto – que agora cancela até clássicos desenhos animados como Tom & Jerry.
Eu Me Importo é um filme desagradável, que não vai muito longe na sua provocação, mas que tira o espectador do ponto morto. Não presta nenhum serviço social no retrato do abuso do idoso, mas tem um elenco talentoso e consciente de estar no terreno da caricatura. Ame ou odeie, J Blakeson é um cara de coragem.
Trailer
Ficha Técnica
TÃtulo: Eu Me Importo/I Care a Lot
Direção: J Blakeson
Duração: 118 minutos
PaÃs de Produção/Ano: EUA/Reino Unido, 2020
Elenco: Rosamund Pike, Peter Dinklage, Eiza González, Dianne Wiest, Isiah Whitlock Jr., Macon Blair, Damian Young, Alicia Witt
Distribuição: Netflix