O mundo ficou boquiaberto com a façanha de Bong Joon Ho no Oscar 2020, inclusive o próprio cineasta sul-coreano. Foram quatro, e nobres, estatuetas para Parasita: melhor filme, direção, roteiro original e filme internacional. O grande vencedor já está disponível em streaming, e vale conferir outros três títulos do artista e refletir sobre como ele quebrou o padrão secular hollywoodiano de privilegiar – e premiar – produções faladas em língua inglesa. Novos tempos!
Bong Joon Ho, aliás, declarou que ficaria um período sem filmar para digerir tamanha conquista, mas recebeu uma carta de Martin Scorsese pedindo que não parasse. Claro que vai seguir o conselho do mestre. Enquanto isso, O Hospedeiro, Expresso do Amanhã e Okja são uma bela mostra do talento desse autor eclético e engajado, que trata das relações desiguais de poder, econômicas e sociais do mundo contemporâneo sem abrir mão de sua vocação para o entretenimento.
Comédia Dramática Thriller

Parasita/Gisaengchung
Por SUZANA UCHÔA ITIBERÊ
Começou com a Palma de Ouro no Festival de Cannes e terminou na histórica cerimônia do Oscar 2019, onde Parasita tornou-se a primeira produção em língua não inglesa a ganhar o prêmio principal, de melhor filme. Bong Joon Ho ainda levou para casa os Oscar de filme internacional, direção e roteiro original. Parasita é uma fábula sombria sobre a disparidade social na Coreia do Sul. Há humor na receita, verdade, mas é um riso nervoso, porque a relação entre patrões e empregados que ele examina aqui vale para qualquer tempo e espaço. O cinema brasileiro abordou a questão em três ótimos filmes recentes: Que Horas Ela Volta?, de Anna Muylaert, Casa Grande e Domingo, ambos de Fellipe Barbosa – e aguarde o ainda inédito Três Verões, de Sandra Kogut.
Joon Ho conduz a narrativa um tom acima do real, uma jogada que lhe dá liberdade para trabalhar arquétipos sem medo da caricatura. Há dois quartetos nesse tabuleiro, formados por pai, mãe e um casal de filhos. Os miseráveis Kim são verdadeiros ratos de porão. Sobrevivem em um muquifo calamitoso no subsolo da cidade e ganham uns trocados ao montar caixas de pizza para uma empresa de delivery. Já a família Park é o suprassumo da elite. A mansão no alto de uma ladeira é um primor arquitetônico de alta tecnologia. São gente do bem, vale dizer.
Os Kim aproveitam como podem a chance de se infiltrar na residência dos ricaços e garantir emprego para todo o clã sem, no entanto, revelar os laços de sangue entre eles. O diretor acompanha com um olhar divertido a rotina de patrões e empregados, que parasitam uns aos outros sem comedimento. Só míopes não percebem que essa é uma via de mão dupla. Joon Ho não faz julgamentos morais, mas leva esse arranjo a um radicalismo violento quando uma ex-governanta volta à residência dos Park para resolver um grave problema pessoal.
Há segredos obscuros e chocantes na trajetória dessa gente que se movimenta por duas casas que possuem vida própria. Repare na quantidade de escadas – é um sobe e desce danado entre o topo e a base da pirâmide social. O clímax beira o surreal e se há um senão em Parasita é o diretor não ter dado o ponto final no auge da tensão. Buscar algum tipo de redenção, nesse caso, faz arrefecer o ânimo do espectador e a potência do que se viu até ali. Ainda assim, é pertubador.
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Ficha Técnica
TÃtulo: Parasita/Gisaengchung
Direção: Bong Joon Ho
Duração: 132 minutos
PaÃs de Produção/Ano: Coreia do Sul, 2019
Elenco: Song Kang Ho, Lee Sun Kyun, Cho Yeo Jeong, Choi Woo Shik, Park So Dam, Lee Jung
Distribuição: Pandora Filmes
Ação Drama Horror

O Hospedeiro/Gwoemul
Foi com a conjugação autoral de excelência narrativa e crítica social de O Hospedeiro, que Bong Joon Ho conquistou definitivamente o sucesso nacional e internacional. Quando lançada em 2006, a produção foi a mais lucrativa da história da Coreia do Sul e se destacou na temporada de prêmios e no circuito de festivais. Uma recepção no mínimo curiosa para um típico filme de monstro, à primeira vista parente próximo dos famosos Godzilla ou Ultraseven dos vizinhos japoneses.
O Hospedeiro é filme de monstro, mas também drama comovente, suspense de roer as unhas com ação ininterrupta, combinados numa inteligência plástica de referências clássicas e criatividade que só um exímio artesão cinematográfico daria conta de articular. E sem se perder no fluxo narrativo, no labirinto dos elementos de gênero ou no propósito alegórico de ácido comentário político-social da contemporaneidade. Tudo isso encrustado na trama clássica do resgate de uma criança das garras de um monstro horrendo pela família ordinária, que se torna heroica frente à ineficiência geral das instituições – todas elas.
Mais admirável ainda é que Bong Joon Ho tenha se inspirado em casos reais: a notícia de um peixe mutante e o “incidente” ambiental da desova de substância tóxica, ambos no rio Han, que atravessa Seul. O filme abre com um cientista norte-americano de uma base militar dos Estados Unidos na Coreia do Sul, obrigando seu assistente coreano a despejar frascos e frascos de formaldeído vencido na pia, que vai dar no esgoto e no rio. A aberração monstruosa que sai do Han e ataca sobretudo os jovens leva consigo, para os esgotos da cidade onde se abriga, a pequena Hyun-seo (Ko Asung, Expresso do Amanhã), filha do apatetado Gang-Doo (Kang-ho Song, O Advogado), que trabalha no trailer-mercadinho do pai (Hee-Bong Byun, Okja), próximo do rio.
O verdadeiro show de horror, na mira da ironia fina do cineasta, é o desfile de absurdos praticados pelo governo, pela comunidade internacional e a imprensa nas ações para eliminar o monstro. Tantos, que a família se reúne para salvar Hyun-seo, contando com o irmão de Gang-Doo, estudado, desempregado e ativista político, e a irmã, atleta de arco-e-flecha. Da criatura feita em computação gráfica pelos estúdios de Peter Jackson (O Senhor dos Anéis) à sofisticada câmera (e a trilha sonora) operística de Bong Joon Ho, o que se assiste é o desmonte apocalíptico de uma civilização, que leva para o seu abismo a pureza, a inocência e a vida de tantas Hyun-seo.
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Ficha Técnica
TÃtulo: O Hospedeiro/Gwoemul
Direção: Bong Joon Ho
Duração: 120 minutos
PaÃs de Produção/Ano: Coreia do Sul, 2006
Elenco: Kang-ho Song, Hee-Bong Byun, Hae-il Park, Doona Bae, Ko Asung, Paul Lazar
Distribuição: Imagem Filmes
Ação Ficção CientÃfica

Expresso do Amanhã/ Snowpiercer
Ficção-científica baseada na graphic novel francesa O Perfura Neve, de Jacques Lob, Jean-Marc Rochette e Benjamin Legrand, Expresso do Amanhã foi a primeira produção ocidental, hollywoodiana e em língua inglesa dirigida por Bong Joon Ho. Deu muito o que falar em 2013, e o ti-ti-ti não parou até hoje, com as idas e vindas de estúdios, roteiros e elenco envolvidos na produção da aguardada série Snowpiercer, baseada nos quadrinhos e no filme, cuja estreia foi anunciada para 31 de maio.
Nem Bong Joon Ho escapou da falta de escrúpulos de Harvey Weinstein, recém-condenado a 23 anos de prisão por abuso sexual. A The Weinstein Company, principal distribuidora do filme, exigiu cortes que o diretor sul-coreano se recusou a fazer. Em represália, os irmãos Weinstein realizaram um lançamento pífio. No Brasil, por exemplo, Expresso do Amanhã só foi lançado no cinema dois anos depois. Mas quando chegou ao streaming, então ainda chamado VOD (video on demand), as excelentes críticas ressoaram e o sucesso foi estrondoso. Nada mais merecido.
A distopia presente na HQ original ganhou o tratamento de um clássico do gênero pela lente profundamente crítica do cineasta. No futuro, a tentativa das supernações de conter o aquecimento global congelou o planeta, e os únicos sobreviventes vivem num trem-bala gigante, construído pelo todo-poderoso Wilford (Ed Harris, numa clara referência a seu outro papel de manipulador em O Show de Truman: O Show da Vida). No último vagão, centenas de operários se amontoam em minúsculos compartimentos, vivendo de uma detestável porção diária de gelatina de proteínas e sob constante vigilância, enquanto nos vagões seguintes a classe média e os ricos têm acesso a restaurantes, escola, baladas, drogas.
Há no ar a inquietação de uma rebelião, e o estopim é o sequestro de duas crianças do último vagão, uma delas filho de Tanya (Octavia Spencer, Ma), voz ativa no grupo revoltoso. A ministra Mason (Tilda Swinton, Suspíria - A Dança do Medo) tenta coibir a ação com ameaças e mortes. Mas o líder Curtis (Chris Evans, Entre Facas e Segredos), inspirado pelo seu velho mentor Gilliam (John Hurt, a saga Harry Potter) e apoiado pelo determinado amigo Edgar (Jamie Bell, Rocketman), decide enfrentar a guarda e tomar a locomotiva de Wilford. Para isso, precisa da ajuda de Minsoo (Kang-ho Song, Parasita), o programador das portas do trem, viciado nas pedras de drogas que circulam na locomotiva. Curtis as tem de sobra para convencer Minsoo e sua filha clarividente Yona (Ko Asung, O Hospedeiro).
Com a bênção do consagrado colega Park Chan-wook (A Criada, Oldboy) como um dos produtores, Bong Joon Ho deu corda à sua rica imaginação, à sua ironia requintada e atroz crítica às desigualdades sociais. Expresso do Amanhã é um primor de cinema, da trama intrigante às coreografadas e originais sequências de ação, dos cenários ao elenco impecáveis, da trilha à escultura dos personagens. Não é à toa que o embate final lembra Neo e o Arquiteto de Matrix Reloaded, mas o epílogo do cineasta sul-coreano é mais otimista.
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Ficha Técnica
TÃtulo: Expresso do Amanhã/ Snowpiercer
Direção: Bong Joon Ho
Duração: 126 minutos
PaÃs de Produção/Ano: Coreia do Sul/República Tcheca, 2013
Elenco: Chris Evans, Jamie Bell, Tilda Swinton, Kang-ho Song, Ko Asung, John Hurt, Octavia Spencer, Ewen Bremer, Ed Harris, Alison Pill
Distribuição: PlayArte
Aventura Drama

Okja
Bong Joon Ho teve seu nome envolvido numa discussão acalorada no Festival de Cinema de Cannes de 2017, por Okja estar na seleção, apesar de ter sido produzido para a Netflix. Os festivais e as premiações internacionais de maior prestígio sempre foram rígidos quanto à condição de exibição nos cinemas para a indicação. Resultado: as produtoras de streaming tiveram que preparar lançamentos fechados (em poucas salass) e limitados (a curto prazo) para se candidatar a prêmios, caso de Roma, O Irlandês e História de um Casamento, por exemplo.
Okja é a cândida fábula da criança que conta com seu animal de estimação para superar obstáculos, só que no estilo autoral do diretor de Parasita. Bong Joon Ho injeta ação, suspense e mesmo violência, e faz uma crítica mordaz à indústria alimentar, ao marketing enganoso, ao jornalismo leviano e ao descaso ambiental. Começa na empresa alimentar Mirando Corporation, onde Lucy Mirando (Tilda Swinton, Expresso do Amanhã) anuncia uma estratégia inovadora, que consiste no envio de porcos “transgênicos” para dez fazendeiros em todo o mundo, para criarem por dez anos. O melhor porco será piloto de uma operação para acabar com a fome mundial.
Acontece que a campeã é Okja, a porca de estimação, gigante e doce, de Mija (Seo-hyun Ahn), adolescente que mora com o avô (Hee-Bong Byun, O Hospedeiro) no alto de uma montanha em meio às inabitadas florestas da Coreia do Sul. Sem saber do concurso, Mija é surpreendida quando o zoólogo-apresentador da campanha, o afetado Johnny Wilcox (Jake Gyllenhaal, Homem-Aranha: Longe de Casa), chega para levar Okja para Nova York. Decidida a resgatar seu enorme pet, ela põe uma mochila nas costas e segue o rastro de Okja. No caminho, é ajudada pelo grupo The Animal Liberation, cujo líder Jay (Paul Dano, 12 Anos de Escravidão) quer aproveitar o grande evento de premiação de Okja para um protesto.
Bong Joon Ho combina gêneros, ótimas atuações e faz referências a Dumbo e animações do japonês Hayao Miyazaki (A Viagem de Chihiro). Mantém no eixo central de sua narrativa a inocência infantil de Mija e seu habitat intocado, para opor a eles as atrocidades do mundo corporativo, que encena literal e simbolicamente. Chocante!
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Ficha Técnica
TÃtulo: Okja
Direção: Bong Joon Ho
Duração: 120 minutos
PaÃs de Produção/Ano: EUA/Coreia do Sul, 2017
Elenco: Seo-hyun Ahn, Tilda Swinton, Paul Dano, Hee-Bong Byun, Jake Gyllenhaal, Giancarlo Esposito, Lily Collins
Distribuição: Netflix