Fernando Meirelles, paulista de coração brasileiro e prestígio internacional, completa hoje 65 anos, e merece uma celebração especial. O diretor e produtor entrou para a cobiçada nobreza hollywoodiana depois de conquistar o mundo com o polêmico, mas histórico, Cidade de Deus (2002), indicado a 4 Oscar e visto no Brasil por 3,2 milhões de espectadores. Com o político O Jardineiro Infiel, conduziu Rachel Weisz ao Oscar de atriz coadjuvante, e fez o escritor José Saramago, vencedor do Prêmio Nobel de Literatura, chorar com a sua adaptação de Ensaio Sobre a Cegueira, que abriu o Festival de Cannes de 2008.
Depois de aventurar-se na animação Som & Fúria: O Filme, dedicar-se a séries de televisão e realizar a inesquecível cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos no Brasil, em 2016, Meirelles dirigiu Dois Papas, indicado a três Oscar, além de assinar a produção de importantes filmes nacionais como Sócrates, o polêmico Marighela, e o aguardado Eduardo e Mônica. Em 2019, foi homenageado pelo Festival de Mumbai com o prêmio Excelência no Cinema. Indicamos para comemorar o aniversário de Fernando Meirelles, o premiado Dois Papas e o incompreendido 360, coprodução internacional de 2011 talvez muito à frente de seu tempo, que merece ser vista e revista.
Comédia Dramática

Dois Papas/The Two Popes
Talvez fosse mesmo essencial que a história de Dois Papas ganhasse a direção de um brasileiro. Afinal, dos cerca de 1,3 bilhão de católicos no mundo, perto de 10% são brasileiros. A Netflix escalou um brazuca fera, Fernando Meirelles, que já fez o grande escritor José Saramago chorar ao assistir à adaptação para o cinema de seu livro Ensaio Sobre a Cegueira. Indicado ao Oscar de direção por Cidade de Deus (2002) e ao Globo de Ouro na mesma categoria por O Jardineiro Fiel (2006), o cineasta adicionou humor e leveza inesperados no retrato de um momento crítico da Igreja.
Em fevereiro de 2013, o Papa Bento XVI, o austríaco Joseph Ratzinger (Anthony Hopkins, 360), renunciou ao cargo. No mês seguinte, o argentino Jorge Bergoglio (Jonathan Pryce, de A Esposa) foi eleito seu sucessor, como Papa Francisco. Ainda em março, dia 23, o Papa emérito recebeu o Papa Francisco em sua casa de veraneio, o palácio de Castel Gandolfo. O encontro entre dois Papas foi um episódio inédito na história do catolicismo. Reinou a cordialidade, claro, mas nos bastidores do Vaticano era sabido que eles discordavam basicamente em tudo. Essa é a realidade. Dois Papas entra em terreno ficcional. No filme, Bergoglio vai a Roma pedir autorização para se aposentar, sem imaginar que Ratzinger já planejava renunciar.
Os diálogos nasceram da mente brilhante de Anthony McCarten, roteirista dos premiados A Teoria de Tudo e O Destino de Uma Nação, que aqui adapta a própria peça de teatro para as telas. De família fervorosamente católica, McCarten preencheu as lacunas narrativas com uma intensa pesquisa de entrevistas e reportagens sobre os espinhosos temas abordados pelos pontífices. A tensão entre eles é tangível. O que Meirelles faz? Quebra o climão com uma descontraída trilha sonora que reúne clássicos do Abba, dos Beatles, tango e canções populares como “Besame Mucho” e “Bela Ciao”.
Sem permissão para filmar na Capela Sistina sob os traços magnânimos do afresco de Michelangelo, a Netflix simplesmente a recriou em cenário nos famosos estúdios Cinecittà, em Roma, além de reproduzir o vigor e o colorido de Buenos Aires nos anos 1960 e 1970 com autêntico frescor. Essa volta ao passado resgata os anos de chumbo na Argentina e o polêmico relacionamento do jovem Bergoglio com agentes da ditadura.
Apoiados nas atuações de Pryce e Hopkins, irretocáveis na composição dos protagonistas até nas múltiplas línguas e sotaques, Meirelles e McCarten transformam os encontros entre o Papa Bento XVI e o então cardeal Bergoglio em fascinantes duelos verbais. Nos corredores e jardins do Vaticano, com uma parada na Capela Sistina, e depois no Castel Galdolfo, eles conversam sobre a fé e o seu exercício sob o manto da Igreja Católica, cindida entre a tradição e a modernidade, e abalada sobretudo pela perda de fiéis, os escândalos de abuso sexual de menores e desvios de fundos do Vaticano.
Do embate entre representantes de duas vertentes aparentemente opostas emergem dois homens com virtudes e fraquezas, capazes de dialogar, atenta e cordialmente, e buscar o melhor caminho para as circunstâncias que os cercam. É nesse sentido que a produção ganha contornos de um buddy movie, filme de amigos, e se torna supreendentemente terna e divertida, conciliadora e exemplar. Fernando Meirelles disse que se envolveu com o projeto pela simpatia com a atuação do Papa Francisco, em favor “de construir pontes em vez de muros”. A mensagem é clara, contundente e comovente.
Trailer
Ficha Técnica
Título: Dois Papas/The Two Popes
Direção: Fernando Meirelles
Duração: 129 minutos
País de Produção/Ano: Argentina/EUA/Itália/Reino Unido, 2019
Elenco: Anthony Hopkins, Jonathan Pryce, Juan Minujín, Luis Gnecco, Cristina Banegas
Distribuição: Netflix
Drama

360
Em seu sétimo longa como diretor, Fernando Meirelles retrata o acaso, mas ele próprio reconheceu que a obra pertence muito mais ao roteirista Peter Morgan (Rush: No Limite da Emoção, Bohemian Rhapsody). No lançamento de 360, em 2011, Morgan explicou que a ideia de adaptar a peça A Ronda, de Arthur Schnitzler, surgiu com a crise econômica mundial de 2008, que escancarou a globalização e provou como o mundo estava interconectado, àquela altura econômica e politicamente, pelo menos.
Ao longo de oito meses, Meirelles filmou em Viena (Áustria), Paris (França), Londres (Inglaterra), Rio de Janeiro (Brasil), Minneapolis (Estados Unidos) e Bratislava (Eslováquia), por onde os personagens vagam e se esbarram, ligeiramente, em meio a seus dramas pessoais. O fio narrativo esgarçado, característica deste subgênero chamado de filme mosaico, cria uma atmosfera fugidia ideal para reforçar a sensação paradoxal de conexão e distância, proximidade e solidão. Algo ainda não tão palpável em 2011, mas já concreto em 360.
A ciranda começa com uma prostituta eslovaca tirando fotos para integrar o catálogo de um cafetão digital e trabalhar em Viena. Seu primeiro cliente seria um executivo inglês (Jude Law, O Mestre dos Gênios) em viagem de negócios, cuja inexperiência e culpa o impedem de viver o prazer agendado. Ele não sabe da infidelidade da sua esposa (Rachel Weisz, A Favorita), amante do fotógrafo brasileiro (Juliano Cazarré, Boi Neon) que presta serviços para a revista que ela edita. Mas a mulher dele (Maria Flor, Albatroz) sabe, e decide voltar para o Brasil.
No voo para o Rio, com parada nos Estados Unidos, o simpático senhor inglês ao seu lado (Anthony Hopkins, Dois Papas) ouve a história da traição e conta a sua saga à procura do paradeiro da filha desaparecida, cujo corpo pode ter sido identificado no país. No aeroporto, ela decide seduzir, sem saber, um jovem condenado por crimes sexuais (Ben Foster, A Qualquer Custo) que acaba de sair da prisão. Numa reunião dos AA, o pai declara desistir da busca. Na sequência, uma jovem russa, que mora em Paris, confessa que vai deixar o marido mafioso para ficar com o chefe. O amor é correspondido, só que ele é muçulmano e não pode assumir a relação. Enquanto isso, o mafioso viaja a Viena e ali contrata a prostituta eslovaca.
E o círculo se fecha, entre o aleatório e o destino, com a edição competente de Daniel Rezende, indicado ao Oscar por Cidade de Deus. A trilha sonora segue a linha globalizada e vai de Paulinho da Viola à banda Nine Inch Nails, com direito a uma composição original de Hopkins, cantada pelo ator. No início e no epílogo, as personagens referem-se a histórias ou ditados sobre caminhos e bifurcações. Meirelles pode ter mirado no acaso, mas acertou mesmo nas escolhas que são feitas quando ele acontece.
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Ficha Técnica
Título: 360
Direção: Fernando Meirelles
Duração: 110 minutos
País de Produção/Ano: Reino Unido/EUA/Brasil/Áustria/França/Canadá, 2011
Elenco: Rachel Weisz, Jude Law, Anthony Hopkins, Juliano Cazarré, Maria Flor, Ben Foster
Distribuição: Paris Filmes