Woody Allen pela Europa

Muito antes de Woody Allen se ver alvo de críticas desconcertantes pelo movimento #MeToo – contra o assédio sexual –, o diretor teve dificuldade de financiar seus filmes autorais, desvinculados de resultados e dos negócios da indústria do cinema. O cineasta nova-iorquino por excelência precisou deixar sua Manhattan querida e filmar na Europa. Nessa fase, realizou um peculiar guia de turismo, aventura, mistério e amor em Londres, Barcelona, Paris e Roma. A seu modo, prestou homenagem aos países que investiram em seu cinema, não só com belíssimas imagens, mas com um enquadramento muito próprio de suas extraordinárias culturas.

O cerebral Ponto Final – Match Point, primeira parada do diretor em Londres, o intenso Vicky Cristina Barcelona, o literário e artístico Meia-Noite em Paris e o vigoroso Para Roma, Com Amor são verdadeiros cartões postais das charmosas cidades, em que Woody Allen embaralhou paisagens, identidades culturais, locais turísticos e tramas romanescas para fazer jus à milenar história de cada uma delas. Malas prontas?

Ponto Final - Match Point/Match Point

Um quarteto romântico e um thriller moral e social corrosivo enquadrados numa Londres cinzenta e linda. Chris Wilton (Jonathan Rhys Meyers, Sem Controle) é um professor de tênis charmoso e ambicioso, irlandês bem-educado, que vê no casamento com a ricaça Chloe Hewett (Emile Mortimer, O Retorno de Mary Poppins) a oportunidade de subir de vida. De fato, torna-se executivo dos negócios e homem de confiança da família.

Mas quando seduz e é seduzido por Nola (Scarlett Johansson, Vingadores: Ultimato), a atraente namorada do cunhado Tom (Matthew Goode, A Sociedade Literária e a Torta de Casca de Batata), Chris coloca em risco tudo o que conquistou. A situação se agrava quando não consegue engravidar Chloe, mas descobre que Nola está grávida. Ele não vê outra saída se não se livrar de Nola a qualquer custo. Acaba, para isso, concebendo um crime perfeito, que resulta longe da perfeição.

Woody Allen filma em Londres pela primeira vez e seu roteiro original, indicado ao Oscar, homenageia a nobreza filosófica e cerebral dos britânicos. Ponto Final – Match Point é ambientado em alguns dos mais tradicionais pontos turísticos da cidade e esquadrinha a mítica opulência aristocrata da alta classe londrina, com direito a vastas e opulentas casas de campo, sob acordes operísticos.

Talvez um dos trabalhos mais sensuais do diretor, Ponto Final – Match Point é também um dos mais críticos à desigualdade social. Nele, a sedução sexual é uma das principais armas de ascensão social, mas é o desejo e a atração entre os “descontentes” que os coloca em perigo. Allen faz um ensaio moral com um epílogo perturbador. Atemporal.

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Vicky Cristina Barcelona

O filme que deu à espanhola Penélope Cruz o Oscar de atriz coadjuvante e a Woody Allen o Globo de Ouro de melhor filme na categoria Comédia e Musical é uma celebração ao famoso sangue quente espanhol, em muitas dimensões. Era preciso ser situado em Barcelona, já que a sensata nova-iorquina Vicky (Rebecca Hall, Um Dia de Chuva em Nova York) está terminando de escrever seu mestrado sobre Identidade Catalã.

Sua melhor amiga, a aventureira Cristina (Scarlett Johansson, fechando a trilogia com o diretor, após Match Point – Ponto Final e Scoop: o Grande Furo) faz bom uso da beleza da capital catalã para suas fotografias e seu curta-metragem. As duas decidem tirar umas férias de verão, antes de Vicky voltar para casa e para o casamento que a espera, e Cristina para um futuro incerto. Quando são abordadas num restaurante por Juan Antonio (Javier Bardem, Todos Já Sabem) e convidadas a embarcar numa viagem ao campo, ambas são seduzidas pelo pintor espanhol.

Um exaustivo, mas divertido, narrador em off conta toda a história. Comenta a turbulenta reação de Vicky à infidelidade e o desprendimento de Cristina em viver com o pintor na volta a Barcelona. O novo casal não contava com a inesperada chegada da intensa e desequilibrada Maria Elena (Penélope Cruz, Todos Já Sabem), ex-mulher de Juan, também artista como ele.

Totalmente estranho aos rompantes passionais dos espanhóis, Allen abre caminho para Penélope e Javier brilharem com seus acalorados personagens. No contraste, os diálogos cerebrais e irônicos (típicos do diretor) dos esnobes personagens nova-iorquinos sobre a cultura e o modo de vida europeu ficam um tom abaixo do usual. Talvez seja proposital, porque Barcelona, em todo o seu esplendor, com suas ruas medievais coloridas, cheias de gente e energia, parece estar sempre sorrindo.

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Meia-Noite em Paris/Midnight in Paris

Quando o alter ego de Woody Allen, Gil (Owen Wilson, Extraordinário), desembarca em Paris com a noiva Inez (Rachel McAdams, Desobediência) e os pais dela, o objetivo dele era aproveitar os dias, no conforto do hotel de luxo sob o charme inigualável da cidade-luz, para finalizar seu primeiro romance. Gil é roteirista de filmes de sucesso, desiludido com o trabalho que exige pouco de seu invejável repertório literário - uma alfinetada bem dada de Allen em Hollywood.

O livro de Gil e o filme de Allen falam de nostalgia como fuga do presente, um antídoto fantasioso e por vezes melancólico para a inconstância e imprevisibilidade da vida cotidiana. O trajeto até essa conclusão madura e inteligente é divertido, culto e adorável. Perdido em Montmartre, Gil ouve as 12 badaladas do relógio da igreja e embarca numa viagem no tempo, para a Paris dos anos 1920, ao encontro de escritores e artistas como Ernest Hemingway, Gertrude Stein, Zelda e Scott Fitzgerald, Cole Porter, Picasso, Salvador Dali, e o cineasta Luis Buñuel.

Com Adriana (Marion Cotillard, Estaremos Sempre Juntos), modelo e musa de Picasso, ele flerta e viaja ainda para a Belle Époque. No histórico Moulin Rouge, o casal encontra os pintores Toulouse-Lautrec, Degas e Gauguin falando da Renascença como a verdadeira época dourada da arte e da história. Enquanto isso, a relação com Inez e a família dela ficam cada vez mais distantes.

Neste requintado jogo de tempos e referências culturais, o elenco brilha e a fotografia estupenda de Darius Khondji marca a identidade visual das três épocas que só Paris acolhe com tanta beleza e naturalidade. A trilha sonora enternece e ao espectador só resta desfrutar do extraordinário passeio histórico e cultural por Paris, conduzido por Woody Allen no vigor de seu talento e excentricidade. Meia-Noite em Paris ganhou o Oscar de roteiro original, foi indicado a melhor filme, direção e direção de arte, e se tornou um dos maiores sucessos da carreira do cineasta.

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Para Roma, Com Amor/To Rome With Love

Se há algo que Woody Allen domina com maestria, entre tantos talentos, é o difícil entrelaçamento entre diversos e distintos núcleos narrativos que se completam de uma maneira ou outra. Para Roma, Com Amor mimetiza a alegria de viver dos italianos em um exuberante e divertido mosaico. Se todos os caminhos levam a Roma, o narrador do filme é um policial gentil e simpático a orientar os pedestres no caótico trânsito da capital italiana e o espectador. 

Antonio (Alessandro Tiberi) e Milly (Alessandra Mastronardi) são recém-casados em visita a Roma para que ela se apresente à família dele, mas quem se faz passar pela noiva acaba sendo a curvilínea e desbocada prostituta Anna (Penélope Cruz, Dor e Glória). Hayley (Alison Pill, da série The Newsroom) é a estudante norte-americana que se apaixona pelo italiano Michelangelo (Flavio Parenti), a quem seus pais, Jerry (Woody Allen) e Phyllis (Judy Davis), vieram conhecer.

Ainda nas tramas românticas, há o arquiteto bem-sucedido John (Alec Baldwin, Nasce uma Estrela) que se torna algo como a voz da consciência de Jack (Jesse Eisenberg, Zumbilândia), um deslumbrado estudante de arquitetura prestes a comprometer o namoro com a dedicada Sally (Greta Gerwig, Jackie) por uma paixonite pela verborrágica e ególatra Monica (Ellen Page, Além da Morte). E, finalmente, mas não menos importante, Leopoldo (Roberto Benigni, A Vida é Bela) é o marido e pai de família alçado à categoria de celebridade nacional, sem mais nem menos, por estrelar um reality show sobre a sua vida ordinária.

Só mesmo Allen para imaginar e encenar uma ópera em que o protagonista entra em cena cantando – e muito bem – no chuveiro, literalmente. Ou quebrar a quarta parede entre o espetáculo e o espectador com um Alec Baldwin imaginário e onipresente. Ou então introduzir um jovem tímido na arte do erotismo com uma Penélope Cruz em voltagem de Sophia Loren. E tudo isso com humor. Novamente em parceria com o diretor de fotografia Darius Khondji e produção de primeira linha, Allen retrata uma Roma belíssima, calorosa, caótica, esplêndida. E ainda consegue, com o personagem de Benigni, opor à cultura milenar da cidade uma crítica aguda à vulgaridade da mídia contemporânea. Bravo!

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