Pobres Criaturas

Bella Baxter acorda para a vida, literalmente. É mulher formada, mas sua mente é a de um bebê, literalmente. Seu criador é o Dr. Godwin Baxter, uma variação legítima de Dr. Victor Frankenstein. Mas Bella não tem nada do monstro do romance de Mary Shelley. É uma moça linda e excêntrica, que vai sorver a vida como se não houvesse amanhã e, pelo caminho, se deparar com pobres criaturas que habitam esse nem tão encantador planeta.

Vencedor de quatro Oscars - melhor atriz, cabelo e maquiagem, figurino e direção de arte -, Pobres Criaturas é a maior extravagância da carreira de Yorgos Lanthimos, o cineasta grego que realiza os filmes mais esquisitos e estava na disputa por melhor direção. Ele já concorreu ao Oscar pelo esdrúxulo roteiro de O Lagosta (2016), em que humanos que não formam um casal dentro do prazo são transformados em animais. Não menos estranha é a desequilibrada rainha inglesa que deu o Oscar à Olivia Colman por A Favorita (2018).

Emma Stone estava no elenco do último, concorreu a coadjuvante até. Agora voa longe como Bella, e conquista nova estatueta dourada para fazer par com a que ganhou por La La Land (2016). As circunstâncias que levam seu “eu” original ao laboratório do Dr. Baxter (Willem Dafoe) são reveladas aos poucos e endossam o comportamento libertário dessa mulher que vai descobrir, afinal, o que é ser mulher.

Coprodutora do filme, Emma votou a favor de alterar o ponto de vista masculino do romance homônimo de Alasdair Gray (1934-2019), adaptado para sua embocadura pelo roteirista Tony McNamara (Cruella), também indicado ao Oscar. O mundo se descortina sob a perspectiva de Bella, uma mulher-bebê sem censura, tabus ou preconceitos, e de incontrolável curiosidade.

Os primeiros passos ela dá na mansão de seu criador, Dr. Baxter, ele próprio cobaia do pai, que o retalhou fisicamente. Um jovem aprendiz, Max (Ramy Youssef), observa e anota tudo maravilhado, ou melhor, apaixonado. As portas se abrem com a chegada de Duncan (Mark Ruffalo, no páreo como coadjuvante), o advogado rico e fogoso com quem ela decide sair pelo mundo. Sua jornada é física, psicológica e territorial.

A descoberta do sexo – e como ela gosta do esporte! –, da gastronomia, da música e da dança é patrocinada por Duncan em paradas por Lisboa, Alexandria e Paris. A vertiginosa aventura, contudo, é marcada por tomadas de consciência. É no Egito que Bella sai da redoma luxuosa e tem contato com pobres criaturas do submundo e da miséria. A inocência sofre um primeiro golpe, que se acentua na temporada na capital francesa.

Dr. Baxter, Max e Duncan acreditam tê-la sob sua tutela. Oras, como poderia ser diferente, pensam eles. Não vai ser fácil para essas três pobres criaturas verem Bella assumir as rédeas da própria vida. E ela faz algumas escolhas radicais, inclusive. Com uma direção de arte de ajoelhar de linda, o diretor insere Bella em uma realidade fantasiosa, fantástica. Quando as peças do passado se encaixam, porém, Pobres Criaturas ganha gravidade.

As razões pelas quais toma a trágica decisão que a leva ao laboratório do Dr. Baxter fincam a trama na realidade crua e cruel, de ontem e de hoje: a opressão feminina. No mundo fabular de Pobres Criaturas, Bella conquista o direito de sonhar, de se reinventar, de evoluir como pessoa e como mulher, de ensinar uma coisa ou outra às pobres criaturas que tentam colocá-la sob sua guarda e comando. Bella é, ou acredita ser, livre.

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