Vencedor do Grande Prêmio do Júri e do Prêmio da Crítica no Festival de Veneza 2023, O Mal Não Existe vai surpreender quem acompanha a carreira do cineasta japonês Ryusuke Hamaguchi. “O desejo é o maior desafio para os parâmetros da conduta social.” A frase é dele e uma bússola para o norte de sua filmografia, que inclui o vencedor do Oscar de Filme Internacional Drive My Car (2021), o Urso de Prata em Berlim Roda do Destino (2021), e Asako I & II (2018), indicado à Palma de Ouro em Cannes. Desta vez, porém, ele expande a temática.
Amor, acaso, livre arbítrio, traição, luto e esperança estão na primeira fila de uma obra ímpar, que agora ganha um novo elemento: a natureza. Com a mansidão de sempre, Hamaguchi aponta sua câmera para cima no início de O Mal Não Existe. Ela capta o balanço do topo das árvores de uma área florestal próxima a Tóquio, em uma dança poética e melancólica. Ali vivem Takumi e Hana, pai e filha. Ele é o faz-tudo de um vilarejo. Corta lenha com destreza e coleta água de um riacho, usada por um restaurante. Ela percorre campo e floresta diariamente, no caminho de ida e volta da escola, porque a carona paternal está sempre atrasada.
Hamaguchi pinta a serena rotina enquanto apresenta outros moradores, para então romper esse compasso com a chegada dos representantes de uma empresa, que vieram mostrar um projeto de glamping (acampamento glamouroso) para a região. Há humor genuíno nas reações incrédulas e questionadoras dos habitantes diante do despreparo da dupla, homem e mulher. Repare, contudo, na atenção e humildade com que os profissionais recebem os protestos e comentários sobre questões diversas, entre as quais risco de incêndio, escoamento séptico e presença de animais selvagens onde pretendem erguer as cabanas de luxo.
Takumi torna-se o elo entre os dois mundos e o cineasta observa, com certa ironia, os efeitos dessa convivência. As tentativas do marqueteiro cortar lenha são hilárias e seu espírito turístico só aumenta a discrepância entre as realidades. No debruçar sobre as relações humanas, ressente-se a ausência do encontro – ou desencontro – entre os sexos, tema primordial da cinematografia do diretor. O máximo nessa troca é um divertido diálogo sobre casamento entre os funcionários da empresa.
A consciência ecológica está no primeiro plano e tem na pequena Hana o ponto de equilíbrio. Em suas andanças, ela vira e mexe avista veados. Trocam olhares admirados e respeitosos. A presença deles é uma ameaça para os glampings? Takumi explica que, a princípio, não. Diz que os veadinhos ficam perigosos apenas se forem atacados. A lei da causa e efeito, cuja dimensão a humanidade custa a compreender. Se há um incômodo em O Mal Não Existe é a abrupta mudança de tom ao final, com uma desnecessária tragicidade. Ou talvez necessária, nesse mundo em que só eventos chocantes tiram as pessoas da indiferença.
Trailer
Ficha Técnica
TÃtulo: O Mal Não Existe / Aku Wa Sonzai Shinai
Direção: Ryusuke Hamaguchi
Duração: 106 minutos
PaÃs de Produção/Ano: Japão, 2023
Elenco: Hitoshi Omika, Ryo Nishikawa, Ryuji Kosaka, Ayaka Shibutani, Hazuki Kikuchi
Distribuição: Imovision