O sujeito sai irritado de uma loja porque não consegue efetuar a devolução de um produto. No estacionamento, começa a dar ré na caminhonete e é barrado por um carro de luxo que buzina sem parar. A motorista também não está em seus melhores dias, e coroa o barulho ao sinalizar com o dedo do meio. Fim de mais uma rixa de trânsito? Nem pensar. É o início de Treta, a genial produção da Netflix que ganhou os Globos de Ouro de melhor minissérie, atriz e ator para Ali Wong (Meu Eterno Talvez) e Steven Yeun, indicado ao Oscar por Minari – Em Busca da Felicidade.
A desavença segue com uma perseguição pelas ruas de Los Angeles que quase acaba em acidente. É o primeiro lote de escolhas erradas do efervescente confronto entre essas duas pessoas em sérios problemas consigo mesmas. Com 10 episódios de cerca de 30 minutos, Treta explora a lei do retorno - “toda ação gera uma reação” - com humor cínico, um certo nonsense, uma aura romântica (acredite), doses de drama e muita adrenalina.
Criada pelo sul-coreano Lee Sung Jin a partir de uma experiência pessoal semelhante, mas que terminou na fase A, a minissérie embrenha-se por duas realidades. Imigrante coreano, Danny é um cara simples, que planeja reparar os danos que causou aos pais, obrigados a voltar para a terra natal depois de perder o hotel que administravam porque ele se meteu com um primo traficante. O irmão caçula, Paul (Young Mazino), continua em solo americano e tenta, sem muito sucesso, se desvencilhar das falcatruas familiares. Pensa em alguém que não se contém em fazer besteira, mesmo ciente de que vai dar errado. É Danny.
Amy, por sua vez, é uma empresária de sucesso no ramo de plantas e mora uma casa chiquíssima. Workaholic e à beira de vender a empresa por uma bolada, culpa-se pela ausência na rotina da filha, cuidada pelo marido, George (Joseph Lee). Escultor amador, ele depende dela financeiramente, mas goza do status de ser filho de um renomado designer. A sogra de Amy está na área e não é amigável. Pensa em alguém sorridente que veste a máscara da felicidade, quando na verdade seu íntimo está em chamas. É Amy.
Danny e Amy vão acessar a face obscura um do outro com invasões de privacidade, provocações e maldades que escalam a níveis criminosos. Flashbacks voltam à infância dos protagonistas em busca das raízes dessas personalidades fraturadas. O engenhoso enredo desafia o espectador a identificar pessoas, situações e relações que expliquem os comportamentos erráticos. E se não houver? E se esses dois simplesmente entraram em tóxicos círculos viciosos por livre arbítrio e lidam sem nenhum equilíbrio com as adversidades da vida?
Esses poços de ansiedade, frustração e raiva são seres autênticos, que provocam empatia e emanam tensão sexual pulsante quando estão diante um do outro. Almas gêmeas, talvez. Também produtores executivos de Treta, Ali Wong e Steven Yeun abraçam os personagens sem julgamentos. Deixam suas inúmeras camadas aflorar e surpreendem com momentos de ternura e vulnerabilidade. Essa humanidade levanta uma torcida única pelos dois.
No papel de uma fútil bilionária e de uma interesseira, Maria Bello (NSCI) e Ashley Park (Emily em Paris) dominam o penúltimo episódio. Entre as muitas figuras que gravitam ao redor de Danny e Amy, elas personificam a carência e o vazio existencial, um mal-estar que muitos acreditam capazes de preencher pela via material. Não à toa, a psicanálise e a religião aparecem como fontes de superação durante a trama. É pena, porém, que esse capítulo apele ao caricato, com violência desnecessária. Não tem problema, porque tudo volta aos eixos no simbólico episódio final. Danny e Amy tomam do próprio veneno, e não cai nada bem. Curiosidade: a última cena, uma delicadeza, foi sugerida por Ali Wong.
Trailer
Ficha Técnica
Título: Treta /Beef
Direção: Lee Sung Jin
Duração: 30 minutos
País de Produção/Ano: EUA, 2023
Elenco: Ali Wong, Steven Yeun, Young Mazino, Joseph Lee, Remy Holt, Ashley Park, Maria Bello, David Choe,
Distribuição: Netflix
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