Em 1858, Edgardo Mortara tinha 6 anos quando foi retirado dos braços da família e levado a Roma para viver sob a guarda do Papa Pio IX. Ele era o sexto filho entre os oito de Momolo e Marianna (Fausto Russo Alesi e Barbara Ronchi), membros de uma comunidade de judeus em Bolonha. Para a Igreja, era uma ação de resgate. Chegou ao conhecimento do padre inquisidor Pier Feletti (Fabrizio Gifuni) que o menino havia sido batizado em segredo ainda bebê, por uma empregada católica temerosa de que ele “não fosse para o céu” se morresse de uma doença que o acometeu. Para o Santo Ofício, uma criança católica não poderia ser criada por família de outra fé. A desesperada mobilização dos pais para reaver Edgardo causou comoção internacional e ficou conhecida como O Caso Mortara.
Steven Spielberg planejava dirigir uma versão da história ao redor de 2016. Já havia escalado Mark Rylance (Ponte de Espiões) como Papa Pio IX e Oscar Isaac (A Vida em Si) na versão adulta de Edgardo. Desistiu do projeto, segundo o site IMDB, por não ter achado o ator mirim ideal, apesar de extensa busca em escolas judaicas nos Estados Unidos e na Europa. O diretor Marco Bellocchio deu mais sorte. Enea Sala, o estreante que interpreta Mortara quando criança em O Sequestro do Papa, é um achado. “Ele nem foi batizado, nunca foi à igreja e não é judeu! O que mostra na tela é sua resposta emocional ao personagem”, conta o cineasta em entrevista de divulgação.
Bom Dia, Noite (2003), um recorte do sequestro do ex-primeiro-ministro Aldo Moro, Vincere (2009), sobre o romance secreto do fascista Benito Mussolini, e O Traidor (2019), retrato do mafioso Tommaso Buscetta, são alguns dos mergulhos do veterano Bellocchio em controversas histórias reais de sua Itália. O drama dos Mortara é a porta de entrada para os bastidores da Santa Fé no século 19, na figura do polêmico Pio IX. Baseado no livro Il Caso Mortara, de Daniele Scalise, Rapito, título original, não demoniza o Papa (Paolo Pierobon). Curiosamente, na visão do diretor há remorso e medo nos pesadelos do pontífice, que dissolveu um núcleo familiar, pedra fundamental do dogma católico, e deu combustível à intolerância religiosa e ao antissemitismo.
No filme, fica clara a predileção de Pio IX por Edgardo entre os meninos do rebanho papal. Como uma “esponja” de inocência, o garoto absorve a catequese sem resistência, enquanto do outro lado do muro há uma via sacra judicial dos pais e seus representantes para reavê-lo. As visitas não eram proibidas e os reencontros com a mãe, em especial, dão dimensão do desmontar da mulher não só privada da criação do filho, mas ciente de que os ensinamentos da Torá se esvaiam na mente de seu pequeno. A reconstituição de época emoldura o sofrimento. Fotografia, cenários e figurinos foram inspirados na pintura pré-impressionista, com os sinuosos contornos de artistas como Eugène Delacroix.
O roteiro se sustenta em três pilares: o sequestro em 1858, o julgamento em 1860 e a captura de Roma em 1870. Essa última fase, com Edgardo crescido e interpretado por Leonardo Maltese, é abrupta e deficitária no relato histórico. A tomada de Roma selou o processo de unificação italiana, encerrou os Estados Papais como entidade política soberana e acirrou os conflitos entre o governo e o Papado. Pio IX se isolou no Vaticano até sua morte em 1878. Isso fica no ar na trama, que avança para 1881 e traz Edgardo no cortejo que transportava os restos mortais para a Basílica de São Lourenço, quando foi atacado por um grupo que tentou lançar o caixão no Rio Tibre. Para o espectador, porém, o horror ao Papa fica restrito ao cruel Caso Mortara, mais um episódio em que religião e poder se unem de forma hedionda.
Trailer
Ficha Técnica
TÃtulo: O Sequestro do Papa / Rapito
Direção: Marco Bellocchio
Duração: 134 minutos
PaÃs de Produção/Ano: Itália, França, Alemanha, 2023
Elenco: Paolo Pierobon, Fausto Russo Alesi, Barbara Ronchi, Enea Sala
Distribuição: Pandora Filmes
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