Laços familiares, de sangue ou não, são a matéria-prima do cultuado Hirokazu Kore-eda, um dos grandes da cinematografia contemporânea japonesa. A câmera que perscruta seres ambíguos, vulneráveis, por vezes trágicos, porém sempre fascinantes, captou famílias peculiares em obras como O Que Eu Mais Desejo (2011), Pais e Filhos (2013), Nossa Irmã Mais Nova (2015) e Assunto de Família (2018), este último indicado ao Oscar de Filme Internacional e vencedor da Palma de Ouro em Cannes. Mas nada prepara o espectador para Monster, porque Kore-eda inova na temática e toca o sublime.
Premiado também em Cannes, o roteiro de Yuji Sakamoto faz o espectador questionar a própria percepção em uma narrativa em três camadas. Na primeira, conhecemos uma jovem viúva que descobre que a mudança de comportamento do filho é fruto de bullying cometido pelo professor. O acolhimento pela direção da escola é nulo, apático. O professor assume ter afligido o garoto, pede desculpas sem nenhuma convicção e a situação só se agrava.
Mas, alto lá! Em seguida, o cineasta focaliza o professor, que se revela alguém muito diferente do carrasco pintado no quadro anterior. Na segunda perspectiva, o bullying ganha uma versão paralela e invertida. A suposta vítima do professor estaria fazendo bullying com um colega, com anuência de outros alunos. As tentativas do professor de controlar a situação teria provocado um mal-entendido.
Nessa dupla e contrastante realidade, ergue-se um painel de pessoas comuns em situações extremas. A vida privada e a pública se digladiam em comportamentos dúbios, misteriosos até. Kore-eda adentra na intimidade dos personagens e ilumina suas naturezas. O espectador se vê, então, em um atordoante jogo de sensações. Julga as próprias impressões e questiona onde está a verdade. Preconceitos de toda sorte são escancarados nesse debruçar sobre a complexidade do ser humano.
E então tudo se desconstrói no terceiro ato. É como se o cineasta entrasse por outra porta, não mais a factual, mas a lírica, voltada para as duas crianças centrais no caso de bullying. A verdade revelada por Kore-eda é banhada pela inocência e por uma certa melancolia. A duplinha cria seu mundo ideal, mesmo ciente de que ele não existe no plano terreno.
Sem antecipar a reviravolta, vale dizer que o monstro do título não é o garotinho que assim se autodenomina. O monstro de Monster tem cara. A cara de uma sociedade hipócrita, injusta e amoral em seus julgamentos pré-concebidos. Uma sociedade que prega a igualdade e a fraternidade enquanto cerceia a liberdade e a individualidade. Uma sociedade que impõe obstáculos cruéis à busca pelo amor. O desfecho, poético, catártico, divino, é uma resposta arrebatadora para todo o mal.
Trailer
Ficha Técnica
TÃtulo: Monster / Kaibutsu
Direção: Hirokazu Kore-eda
Duração: 126 minutos
PaÃs de Produção/Ano: Japão, 2023
Elenco: Sakura Ando, Eita Nagayama, Soya Kurokawa, Hinata Hiiragi, Mitsuki Takahata
Distribuição: Imovision