Assisti a Bacurau na noite de abertura do 47º Festival de Cinema de Gramado, onde o longa passou fora de competição. Terminei a sessão profundamente incomodada. Com o filme e com a plateia. A solução final, o combate da violência pela violência, arrancou aplausos e “uhus!” entusiasmados. Por mais estilizado – à la Tarantino – que seja, esse revanchismo odioso e sanguinário diz muito da atual polarização política e social. Não há meio termo, não há espaço para a empatia, e o que dizer da tolerância. Está tudo ali, pintado de vermelho na tela desse provocador e pungente trabalho escrito e dirigido por Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles – vencedor do Prêmio do Júri no Festival de Cannes.
Não houve um único personagem que me tocasse especialmente. São inúmeros, todos com pouco tempo em cena. Depois da gloriosa atuação em Aquarius, sob a batuta de Mendonça Filho, Sonia Braga limita-se a frases de efeito e não tem protagonismo na pele de uma médica. Nem ela, nem ninguém. Thomás Aquino, Bárbara Colen e o ator alemão Udo Kier exercem maior influência nos rumos da trama, mas seus personagens ficam na superficialidade. Diálogos também não são o forte de Bacurau, principalmente do núcleo internacional, cujas atuações são artificiais. Mas a generalidade gera indiferença? De jeito nenhum. Esse é um filme coletivo, sua força se faz pelo todo. Cada peça, por menor que seja, é fundamental para a engrenagem funcionar. E como funciona.
Bacurau perturba porque joga na cara uma realidade cruel que se impõe desde que o mundo é mundo. Conquistadores e conquistados, opressores e oprimidos, invasores e invadidos. A história se passa num futuro próximo, mas o futuro em Bacurau é hoje. Esse povoado do sertão de Pernambuco vive em um certo equilíbrio. Há educação, religiosidade, calmaria, união e mesmo a falta de água é manejada com caminhões pipa. Os habitantes ignoram o prefeito picareta, que mora na cidade e só aparece para angariar votos ou pegar prostitutas locais. A vida segue. Até que, misteriosamente, a comunidade some do mapa no satélite e uma série de assassinatos inexplicáveis começa a acontecer.
Os diretores buscam no western e no legado de Glauber Rocha os signos para enquadrar esse microcosmo. Pelo viés futurista, os forasteiros (Karine Teles e Antonio Saboia) surgem não a cavalo, mas montados em motocross. Eles são o elo com os verdadeiros intrusos, o gringos, cuja presença em Bacurau se dá por razões torpes, bizarras. Para sobreviver a um massacre estarrecedor, a comunidade terá de revisitar um passado indesejado: o cangaço. As armas, que se tornaram peças de museu, terão uso mais uma vez. Lunga (Silvero Pereira), o resquício daquela era, então expatriado, é reintegrado para defender Bacurau. E se o público comemora tanto essa reação armada é porque, neste caso, é a única forma de resistir.
Resistência, não revide. Está aí a diferença. Os diretores recorrem ao humor negro “tarantinesco” em uma tentativa de amenizar a carnificina. É um confronto catártico, surreal. Para alguns, emocionante. Para mim, profundamente triste. As armas ganham protagonismo em Bacurau, mas a mensagem é um grito antibélico. A humanidade está perdida? Na entrevista abaixo, com os diretores e os atores Thomás Aquino e Bárbara Colen, o cineasta Juliano Dornelles diz que só o fato de estarmos lado a lado, conversando sobre o tema, já é uma luz no fim do túnel. Há esperança. Melhor assim.
Trailer
Ficha Técnica
TÃtulo: Bacurau
Direção: Kleber Mendonça Filho, Juliano Dornelles
Duração: 131 minutos
PaÃs de Produção/Ano: Brasil/França, 2019
Elenco: Sonia Braga, Bárbara Colen, Thomás Aquino, Udo Kier, Karine Teles, Antonio Saboia
Distribuição: Vitrine