Cinco décadas separam São Paulo S/A (1965), a obra seminal de Luiz Sérgio Person, que flagra a capital paulistana a caminho de se tornar a metrópole de hoje, da delicada comédia romântica De Onde Eu Te Vejo (2016), de Luiz Villaça, em que a remodelação imobiliária da cidade é metáfora para a renovação – ou não – do amor conjugal.
Nos dois filmes, cada um a seu modo, tão distintos, São Paulo é a personagem que se destaca, berço determinante dos personagens, de suas histórias, de um modo de vida. Em preto e branco, nostálgica, voraz e cruel, ou a cores, moderna, decadente e afetiva, nossa querida Sampa, que neste 25 de janeiro completa 467 anos, continua a ser destino de sonhos e endereço da realidade.
Comédia Romântica

De Onde Eu Te Vejo
Casados na vida real, o diretor paulistano Luiz Villaça e a atriz carioca Denise Fraga colecionam prêmios e sucesso, na televisão, no teatro e no cinema (Por Trás do Pano, Cristina Quer Casar). Em De Onde Eu Te Vejo, a dupla mantém suas origens para contar duas histórias de amor – a do casamento de 20 anos de Ana (Denise) e Fábio (o saudoso Domingos Montagner), e a de Villaça e seu filme por São Paulo.
A primeira começa pelo avesso, já que Ana e Fábio estão separados, por decisão de Ana. Mas ele vai morar no prédio em frente, e ambos se veem, se comunicam e se controlam pelas janelas de vidro da sala. Os dois se conheceram no dia em que chegavam a São Paulo para começar vida nova, ela do Rio, ele de Ribeirão Preto. Arquiteta, Ana tinha o sonho de construir prédios para embelezar a selva de pedra paulistana. Jornalista, Fábio começaria a trabalhar num grande jornal da capital. Logo, se apaixonou pela cidade.
Fábio resiste a aceitar a separação e a distância da filha Manuela, prestes a mudar para o interior para cursar a faculdade. Quando é demitido do único jornal em que sempre trabalhou, obrigado a se render aos posts digitais, tudo fica pior. Mística, às vezes até demais, Ana está em crise existencial. Vive de identificar casas e estabelecimentos antigos aptos para serem demolidos e dar lugar a novos prédios. A metáfora pessoal seria óbvia, mas seu tracejado atrás de imóveis pela cidade a leva a encontros inestimáveis.
São pequenas pérolas de diálogos saídas das conchas do talento da veterana Laura Cardoso, por exemplo, vencedora do Grande Prêmio do Cinema Brasileiro de atriz coadjuvante, no papel da senhorinha solitária que ocupa a sala da casa com viveiros de pássaros. Ou ainda de Juca de Oliveira, como o dono do cinema de rua fechado com tábuas. Marisa Orth se demora mais na tela, como a amiga do casal e colega de Fábio no jornal.
O roteiro entrelaça o romance à cidade, às memórias do casal impregnadas nos bancos de rua, nos restaurantes do coração, nas rotas do metrô, numa cartografia afetiva, ao mesmo tempo única e universal. Colorida, bela e exuberante como nunca, a São Paulo que batizou o amor de Ana e Fábio parece ser a única capaz, com suas próprias e constantes metamorfoses, a lhes fornecer o mapa do caminho de volta. Carismáticos, Denise Fraga e Domingos Montagner invadem de ternura e emoção Ana e Fábio, mesmo nas brigas mais acirradas, sublinhando o lirismo da direção delicada de Villaça.
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Ficha Técnica
TÃtulo: De Onde Eu Te Vejo
Direção: Luiz Villaça
Duração: 113 minutos
PaÃs de Produção/Ano: Brasil, 2016
Elenco: Denise Fraga, Domingos Montagner, Manoela Aliperti, Marisa Orth, Laura Cardoso, Juca de Oliveira, Fúlvio Stefanini
Distribuição: Warner Bros.
Drama

São Paulo, Sociedade Anônima
Revisitar a obra-prima de Luiz Sérgio Person (1936-1976), marco da cinematografia paulista e brasileira, é se encantar duplamente. Primeiro, com o domínio artístico e a concepção antropofágica do cineasta sobre o homem moderno e urbano. Depois, com a beleza das imagens da São Paulo de 1964 - em registro tanto ficcional como documental, um memorial exuberante - e a denúncia, hoje profética, da matriz desagregadora, pessoal e coletivamente, da submissão humana ao capital, ao consumo e à indústria.
Da primeira à última sequência, em deslumbrante preto e branco e com ecos do neorrealismo, os altos prédios imponentes e as multidões de São Paulo, onipresentes, são espelho da opressão. A parceria entre Person, o diretor de fotografia argentino Ricardo Aronovich (A Família), com suas angulações e planos labirínticos e improváveis, o compositor Cláudio Petráglia (A Moreninha) e o elenco irretocável fizeram jus ao roteiro já brilhante por si só, escrito pelo cineasta. São Paulo, Sociedade Anônima - ou São Paulo S/A - é magistral.
Lançado em 1965, foi a estreia de Person na direção, e de Walmor Chagas (1930-2013) no cinema. Ele interpreta Carlos, protótipo do homem comum em trajetória de ‘se fazer’ na vida. Em cinco anos, de 1957 a 1961, Carlos se envolve com três mulheres e um empresário italiano com bom faro tanto para os negócios na promissora indústria automobilística, cortesia do “milagre brasileiro” do presidente Juscelino Kubitschek, como para as falcatruas financeiras e trabalhistas.
Person embaralha a cronologia e as emoções de Carlos. Ele “pensava que gostava de Ana” (Darlene Glória, Toda Nudez Será Castigada), pin-up sedutora e libertina, desgostosa com a obrigação de visitar a mãe doente no interior. Mas não deixava de desfrutar dos encontros com Hilda (Ana Esmeralda), mulher culta e despojada. Quando decidiu casar-se com a geniosa Luciana (Eva Wilma, Feliz Ano Velho), sua colega do curso de inglês, parece ter sido mais por impulso do que por amor.
No trabalho, como o braço direito de Arturo (Otelo Zeloni, 1921-1973, Papai Trapalhão) na fábrica de engrenagens vendidas para as montadoras multinacionais, Carlos ganha acima da média. Mas não demonstra ambição profissional nem perde de vista a postura antiética do patrão, pessoal e corporativa. Ao saber da proposta secreta de Ana a Arturo para promovê-lo a sócio, e da decisão trágica de Hilda após a precoce viuvez, Carlos surta. Abandona Ana e o filho, o trabalho, rouba um carro e foge, a toda velocidade.
Apenas para voltar a São Paulo, no dia seguinte, inadvertidamente, na boleia de um caminhão, refém do moto-contínuo existencial do sonho feliz da metrópole. Carlos é um anti-herói, indelicado, espectador da sua própria vida. Recusa o padrão social do êxito, mas não o substitui por outro. Haverá outro? No documentário Person (disponível em streaming) de 2007, dirigido pela filha do cineasta, Marina Person, o ator Paulo José, que trabalhou com o cineasta em Cassy Jones, o Magnífico Sedutor (1972), afirma que “Person tinha uma trajetória que se previa extraordinária, seria das mais importantes do cinema brasileiro... porque ele sabia o que era escrever com a câmera”. São Paulo S/A é prova inegável da promessa, interrompida pela morte precoce do cineasta, aos 39 anos, em um acidente automobilístico.
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Ficha Técnica
TÃtulo: São Paulo, Sociedade Anônima
Direção: Luiz Sérgio Person
Duração: 107 minutos
PaÃs de Produção/Ano: Brasil, 1965
Elenco: Walmor Chagas, Eva Wilma, Otelo Zeloni, Darlene Glória, Ana Esmeralda
Distribuição: Columbia Pictures