Quando parente não é serpente

Quem não associa a Itália com a sabedoria de viver com muitas emoções e boa comida, não sabe o que está perdendo. No panorama de filmes recentemente produzidos na Itália, há duas produções com protagonistas raramente vistos na cinematografia do país, tratados com amorosidade por seus diretores, e que são também, cada um à sua maneira, profundamente amorosos. Euforia, de Valeria Golino, filme de abertura da Festa do Cinema Italiano, e Dafne, de Federico Bondi, são uma ode à vida e à importância de se cultivar laços de afeto, em especial os familiares, bem ao gosto dos apaixonados italianos.

Euforia

A premiada atriz napolitana Valeria Golino (A Casa de Veraneio) estreou na direção em 2013, com Miele, e saiu do Festival de Cannes daquele ano com o Prêmio do Júri Ecumênico – Menção Especial, dividido com Pais e Filhos, de Hirokazu Koreeda, portanto, em ótima companhia. Com Euforia, no qual ela também assina o roteiro, participou da mostra competitiva Um Certo Olhar, em Cannes 2018.

Para o cinema italiano, Euforia tem uma atração a mais. Nos últimos 30 anos, é a primeira vez que uma produção comercial de apelo internacional traz um protagonista gay. É o ator Riccardo Scamarcio (John Wick: Um Novo Dia Para Matar), ex-companheiro e parceiro da diretora na produção de Miele e no elenco de A Casa de Veraneio. O personagem, Matteo, é um executivo bem-sucedido, elegante, hiperativo, cercado de amigos e chegado a uma farra.  

Quando é surpreendido pela notícia de que seu irmão mais velho, Ettore (Valerio Mastandrea, do sucesso Perfeitos Desconhecidos) está com suspeita de diagnóstico de câncer, Matteo não pestaneja em trazê-lo a Roma parar cuidar dele, dos exames. Ettore é um pacato professor de biologia que nunca saiu da pequena cidade em que os irmãos nasceram, é avesso a festas e dono de uma consciência social apurada. É a fatalidade que os reaproxima, e Matteo faz uma difícil escolha pelo irmão e por si mesmo.

O choque entre o mundo de glamour, agitação, sexo fácil e drogas à vontade de Matteo e o ritmo contemplativo, enraizado, familiar, próximo à natureza de Ettore compõe o novelo narrativo que Valeria Golino, com humor, ternura e a veia aberta da emoção tão típica dos italianos, desenrola aos poucos na convivência tardia dos irmãos, espelhos de um país que abraça a modernidade sem nunca deixar de ser um dos grandes berços da história.   

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Dafne

O diretor Federico Bondi reconhece que não teria sido capaz de escrever o roteiro deste seu segundo longa de ficção se não tivesse conhecido Carolina Raspanti, a estrela de seu filme. Com 35 anos, Carolina é portadora de Síndrome de Down, autora de dois livros autobiográficos de sucesso, independente, realizada. Como a protagonista Dafne, trabalha há 12 anos num supermercado, querida entre os colegas e a comunidade. 

Dafne foi selecionado para a mostra Panorama no Festival de Berlim 2019, e vencedor do Prêmio Fipresci, concedido pela Federação Internacional de Críticos de Cinema, com a seguinte declaração: “Pelo retrato comovente e profundamente humano de uma filha e seu amado pai que tentam superar o luto, e pelas performances inesquecíveis de Carolina Raspanti e Antonio Piovanelli”.

No último dia da tradicional viagem de férias de verão da família, Dafne perde a mãe. Com personalidade marcante, portadora de Síndrome de Down, ela enfrenta a dor e a tristeza com uma força e determinação inspiradoras. E sabe que não será fácil a convivência com o pai (Antonio Piovanelli), com quem não costumava se dar muito bem, e que fica profundamente deprimido com a viuvez.

É admirável testemunhar o brilho da atuação de Carolina e de Piovanelli, bem como o sensível e contido trabalho de Bondi na direção desta sua história de perda e pesar, narrada com a naturalidade de quem reconhece a inevitabilidade não apenas da morte como da dor da ausência, e também da necessidade de prosseguir. É por essas trilhas do inevitável que Dafne, o filme, se movimenta, a partir do olhar corajoso de Dafne, a personagem. Quando, no terceiro ato, ela e o pai saem numa viagem de final de semana pelas trilhas frias e nevoentas do interior da Toscana, para visitar o túmulo da mãe, a distância do caminho é inversamente proporcional ao sentimento que brota no coração dos dois.

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