Duas comédias românticas que driblam clichês

O bardo William Shakespeare dominava os signos da comédia romântica lá no século 16. Tanto que, quatro séculos depois, Kenneth Branagh, um dos seus maiores entusiastas na sétima arte, manteve o frescor do original na adaptação da peça Muito Barulho por Nada (1993). Antes um subgênero da comédia e do romance, a comédia romântica foi lapidada desde os primórdios do cinema.

Antes de mais nada, criou clichês para chamar de seus – final feliz, encontros e desencontros, antagonistas que se apaixonam, amigos (sidekicks) fiéis que agem como cupidos e tantos outros. Teve períodos de glória, mas também de mesmice e decadência. De vez em quando, surgem aquelas que honram os clichês e ainda injetam simpatia e ousadia à receita. É o caso de duas novidades em streaming.

Uma delas é a produção da Netflix Amor à Primeira Vista. O título batido não faz jus aos divertidos e comoventes percalços do romance entre uma americana e um inglês unidos pelo acaso, ou seria pelo destino? Já em Coisas do Amor, sobra crítica e engajamento no encontro entre um astro do cinema e uma atriz de stand-up. Outro título bobinho para um filme que de bobo não tem (quase) nada, e ainda conta com o atrativo de vir da Alemanha, um país sem tradição no gênero.

Amor à Primeira Vista/Love at First Site

A Probabilidade Estatística do Amor à Primeira Vista, nome do livro de Jennifer E. Smith que inspirou Amor à Primeira Vista, tem uma palavrinha que faz toda a diferença: probabilidade. Qual a chance de se perder um voo e, enquanto espera o próximo, conhecer alguém especial que estará no mesmo avião? E qual a chance de um defeito em um cinto de segurança colocar os dois lado a lado?

Quem faz o estudo do acaso, ou do destino, é a atriz Jameela Jamil, que assume como narradora e cupido, ao incorporar diversas personagens que dão uma ajudazinha aos pombinhos da vez. A americana Hadley (Haley Lu Richardson, A Cinco Passos de Você) e o inglês Oliver (Ben Hardy, Bohemian Rhapsody) formam a dupla central, e o primeiro acerto da trama é dar tempo para o entrosamento. Primeiro em um café no aeroporto de Nova York, depois nas sete horas do voo com destino a Londres.

Em diálogos bem-humorados, a química e a sintonia ganham autenticidade. Eles falam sobre seus medos e das razões pelas quais estão atravessando o Atlântico. Ela para um casamento, ele para um funeral. É fácil acreditar nesse amor, mas um pequeno infortúnio faz com que se percam um do outro na chegada. Qual a chance de se verem novamente? O enredo e o cupido se encarregam de reuni-los, mas os dramas pessoais de cada se incumbem de afastá-los.

Aí está o ponto forte da diretora estreante em longas Vanessa Caswill. Há um sabor agridoce, talvez até amargo, na história do casal. Porque Hadley precisa encarar uma nova realidade familiar, com o segundo casamento do pai, enquanto a família de Oliver lida com o luto de uma forma inusitada e até artística. São empecilhos que fogem do lugar comum no gênero e cativam o espectador. Até Shakespeare deixa sua marca, com uma sequência inspirada em Romeu e Julieta. 

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Coisas do Amor / Liebesdings

Pode apostar que muita gente vai chamar Coisas do Amor de comédia romântica lacradora. Não falta ousadia nas temáticas que envolvem um improvável romance, e a roteirista e diretora alemã Anika Decker ilumina antigos e novos tabus. E vai além, ao lançar um olhar crítico sobre a mídia e o universo digital. O palco é Berlim, que se agita com a chegada de Marvin Bosch (Marco Albrecht), o astro de cinema do momento.

Na forma da mau-caráter Bettina (Alexandra Maria Lara), a imprensa sensacionalista invade a privacidade do galã, que precisa sair de cena depois de dar tudo errado em uma entrevista. Acuado por fãs e paparazzi, ele se refugia em um decadente teatro feminista e LGBT+, chamado 3000. Infiltrado nos bastidores, se espanta e se encanta com o stand-up de Frieda (Peri Baumeister), que faz um humor erótico focado no clitóris.

Para a dupla que assessora Marvin, aquele é o esconderijo ideal, entre lésbicas, trans e drag queens. Longe do glamour, dos holofotes e do assédio – pois ninguém ali dá a mínima para seu status –, ele se envolve com Frieda. Se o 3000 está à beira da falência, a carreira de Marvin também fica por um fio com estragos provocados por fake news. O papo é reto sobre sexo, fama, drogas e até feminicídio.

Por outro lado, Coisas do Amor é pudico e conservador nas cenas românticas e na abordagem de tópicos polêmicos como o aborto. Chega a ser ingênua a maneira como a cineasta explora um trauma do passado do protagonista, cuja solução é das mais simplistas, para não dizer preguiçosa. Apesar das irregularidades, principalmente na falta de sutileza na busca pelo riso e na insistência em tramas paralelas, há méritos nessa incomum investida do cinema alemão no gênero.

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