Há poucas cinematografias que poderiam colocar em cena – de uma comédia de suspense, ainda por cima – um crítico de literatura com seu próprio programa campeão de audiência na TV, uma Biblioteca dos Livros Rejeitados, uma professora-fazendeira bibliófila e um desconhecido pizzaiolo autor best-seller. Neste caso, não de um livro de receitas, mas de um romance literário de grande qualidade artística, intitulado “As Últimas Horas de uma História de Amor”. O cinema francês é, definitivamente, uma delas.
Obviamente, o mais recente trabalho do diretor e roteirista Rémi Bezançon (Nosso Futuro) é sobre o mundo literário francês, mas a crítica ácida e certeira que faz ao mercado editorial é universal. Bezançon adaptou o livro homônimo de David Foenkinos, escritor com os dois pés no cinema, já que dirigiu a adaptação de dois de seus outros romances, A Delicadeza do Amor (2011) e Jalouse (2017), inédito por aqui.
Jean-Michel Rouche (Fabrice Luchini, como sempre irretocável) é o rigoroso crítico literário que fica intrigado com a qualidade do romance póstumo de Henri Pick, obscuro e simplório pizzaiolo de uma pequena cidade da Bretanha, publicado pela famosa editora francesa Grasset, e elevado à categoria de best-seller após uma eficiente campanha de marketing.
O original foi encontrado na inusitada biblioteca da cidade pela jovem e ambiciosa agente literária Daphne (Alice Isaaz, de Doce Veneno), para a tristeza de seu enciumado namorado Fred (Bastien Bouillon, de 2 Outonos e 3 Invernos), autor de um único romance fracassado. A biblioteca, aliás, é inspirada na obra “The Abortion: An Historical Romance 1966”, do escritor americano Richard Brautigan, cujo protagonista trabalha numa biblioteca de manuscritos não-publicados. As citações literárias, aliás, são um dos deleites do filme, dos russos Pushkin e Dostoiévski a Proust e Marguerite Duras.
Rouche questiona a autoria do livro em seu programa de TV ao vivo, no estilo pouco cortês que lhe é peculiar, e é demitido da emissora e do casamento no mesmo dia. Agora, é questão de honra solucionar o que ele acredita ser um mistério. Sua improvável parceira na investigação será justamente a filha bibliófila de Pick, Joséphine (Camille Cottin, de Tal Mãe, Tal Filha). A enquete recheada de falsas pistas começa na Bretanha e deve terminar em Paris.
Com Antoine Monod (Chatêau-Paris), seu habitual diretor de fotografia, uma trilha sonora descolada e produção caprichada, Bezançon deixa brilhar a paisagem da Bretanha e a incomparável beleza de Paris. Ele navega à vontade nas zonas fronteiriças dos gêneros que visita, e reveste seu texto esperto com a roupagem cinematográfica que mais lhe faz jus. Mas a maior qualidade do cineasta talvez seja mesmo, de uma maneira leve e sedutora, reconduzir as palavras e as ideias ao papel de protagonistas de seu filme. Algo que talvez o mundo literário globalizado, com suas estratégias de marketing “matadoras”, também devesse voltar a praticar.
Trailer
Ficha Técnica
TÃtulo: O Mistério de Henri Pick/Le Mystère Henri Pick
Direção: Rémi Bezançon
Duração: 100 minutos
PaÃs de Produção/Ano: França/Bélgica, 2019
Elenco: Fabrice Luchini, Camille Cottin, Alice Isaaz, Bastien Bouillon, Astrid Whettnall, Hanna Schygulla
Distribuição: A2