“Uma vez que você foi preso, você fica para sempre preso”, diz Caetano Veloso no documentário Narciso em Férias, de Ricardo Calil e Renato Terra (Uma Noite em 67). O título é o mesmo do capítulo do livro Verdade Tropical, no qual Caetano escreve sobre sua prisão em 1968, durante a ditadura militar no Brasil. Único longa-metragem brasileiro no Festival de Veneza 2020, o filme foi exibido fora da seleção competitiva, na tarde do dia 7 de setembro, um trago amargo na celebração da independência do País. Se a memória da prisão não abandona jamais quem a viveu, parece ser necessário e urgente lembrar – e denunciar – a corrupção dos direitos humanos e dos valores democráticos que levaram à prisão de Caetano, Gilberto Gil, e tantos outros nesse período negro da história do Brasil. Narciso em Férias o faz de maneira honesta, despojada, livre e contundente.
Hoje aos 78 anos, Caetano Emanuel Viana Teles Veloso senta-se numa cadeira no centro de um cenário vazio, cuja parede cinza-esverdeada de fundo pouco contrasta com o seu figurino, a não ser pela calça e os sapatos pretos. Dali, conta basicamente em ordem cronológica sobre os 54 dias de cárcere. Ele e Gil foram presos duas semanas após a promulgação do Ato Institucional Nº 5, logo após o Natal de 1968. Os fatos: a prisão em São Paulo, a viagem ao Rio, a passagem por três prisões (a primeira delas uma solitária), o interrogatório tardio, a arbitrariedade, os quartéis, os militares, as armas.
Gravado em 2018, Narciso em Férias é feito do olhar de Caetano, agora na distância do tempo e da maturidade. Seu tom é às vezes grave, às vezes desesperado, às vezes até engraçado, mas o riso é nervoso, desconfortável, temeroso. Tanto, que Caetano chegou a pensar que sua vida era a solitária e tudo fora dali havia sido um sonho. Aterrorizante. Os únicos dois livros que recebeu, de um colega de cárcere, foram O Bebê de Rosemary, de Ira Levin, e O Estrangeiro, de Albert Camus. Não ajudaram, mas ler era um alívio, já que por não ter diploma, ele não tinha direito a um violão. Ainda assim, ouvia músicas nos radinhos dos vigias.
Uma das passagens mais comoventes é sobre a gênese de “Terra”, composta dez anos depois. A edição da revista Manchete com a primeira viagem à Lua na capa entra em cena, bem como o processo da prisão com o interrogatório, que Caetano lê em voz alta. Ele e Gil foram falsamente acusados pelo apresentador da TV Record, Randal Juliano, de parodiar o Hino Nacional e ofender a bandeira brasileira em um show no Rio. Como diz Caetano na letra de “Terra” e nos lembra em Narciso em Férias, é preciso não esquecer.
Trailer
Ficha Técnica
Título: Narciso em Férias
Direção: Ricardo Calil, Renato Terra
Duração: 84 minutos
País de Produção/Ano: Brasil, 2019
Elenco: Caetano Veloso
Distribuição: Uns Produções e Filmes