Mulan

Não foram poupados recursos para (re)construir a grandiosidade da lenda chinesa impressa no poema anônimo A Balada de Mulan, datado do século 6 d.C., no qual o roteiro foi baseado e ao qual Mulan presta homenagem. Com orçamento de US$ 200 milhões, a versão live action da querida animação da Disney foi dirigida pela neozelandesa Niki Caro (Encantadora de Baleias), que teve de enfrentar a frustração de ver seu blockbuster não chegar à telona mundo afora. Após sucessivos adiamentos por conta da pandemia global, Mulan foi lançado diretamente em streaming no Disney+.

Mulan não é uma refilmagem, embora reverencie o desenho em vários momentos, inclusive na participação afetiva de Ming-Na Wen (The Mandalorian), a dubladora da protagonista animada. Vale lembrar que a recepção chinesa à animação de 1998 foi acanhada, avessa aos usuais estereótipos com que o entretenimento ocidental retrata o Oriente. Em especial o personagem Mushu, o divertido dragão falante que deveria proteger Mulan na sua arriscada jornada. Dublado por Eddie Murphy, Mushu é um dos personagens mais populares dessa fase da produção da Disney.

O novo Mulan não quis correr esse risco. Abdicou de Mushu e das canções, substituídas por uma trilha sonora evocativa e discreta, em favor de uma explosão de cores, figurinos, maquiagem, locações e cenários esplendorosos. Todo o rigor técnico necessário para encenar batalhas e lutas no estilo wuxia, gênero de escrever e filmar sobre o imaginário chinês de artes marciais e lutas de espadas. Mulan é a primeira produção hollywoodiana com elenco composto apenas por atores e atrizes asiáticos, cujo alvo era inicialmente os milhões de espectadores chineses.

A indisciplinada Mulan (Yifei Liu, O Reino Proibido) continua a desafiar o destino do casamento arranjado que traria honra à sua família, mas agora possui o Chi exacerbado dos grandes guerreiros (embora, na China, Chi nomeie a energia vital ou força interior presente em todo ser humano). Quando seu amoroso e idoso pai (Tzi Ma, Parque de Meditação) é convocado para lutar pelo Imperador (Jet Li, Herói) na guerra contra os invasores Rouran, liderados pelo inclemente Bori Khan (Jason Scott Lee, Dragão: A História de Bruce Lee), Mulan se apodera da espada e vestimenta do pai e toma o seu lugar na guerra. Além do difícil treinamento, do disfarce e das sangrentas batalhas, Mulan enfrenta a bruxa Xianniang (a deslumbrante Gong Li, A Maldição da Flor Dourada), espécie de alter ego do mal da heroína.

Concebido para encantar na tela grande, Mulan perde em magnitude na telinha do streaming. Com ritmo e cadência truncados, a opulência e riqueza visual acabam se sobrepondo à emoção e envolvimento com a história e os personagens, o que provoca um indesejado distanciamento. O filme invoca valores transcendentais da cultura chinesa - coragem, lealdade, verdade e família - sem comprometer a trajetória de autoconhecimento de Mulan e de reconhecimento de seu valor num terreno habitado apenas por homens. Para tanto, porém, a heroína precisou ganhar atributos sobre-humanos, via seu Chi, uma contradição sutil, mas talvez fatal.

Fatal foi, sem dúvida, a polêmica política que se instaurou na China e em outros países do Sudeste Asiático graças a um comentário da atriz Yifei Liu a favor de ações repressivas da polícia de Hong Kong, ainda quando do lançamento do trailer em meados de 2019. Mas, sobretudo, pelos agradecimentos do estúdio, ao final dos créditos, a órgãos oficiais de Xinjiang, região da China em que ocorreram parte das filmagens, que tem sofrido denúncias de violação de direitos humanos devido a preconceitos étnicos, negadas pelo Estado. O fato gerou um movimento de boicote ao filme nas redes sociais asiáticas.

Durante os créditos finais, Christina Aguilera canta “Loyal Brave True”, composta especialmente para o filme, e Yifei Liu canta uma belíssima versão da já clássica “Reflection”, gravada em inglês e mandarim. No Disney+ Brasil ainda não há legendas em português para Mulan, mas o desenho animado tem ambas as versões, dublada e legendada. Há ainda vários vídeos extras com entrevistas, making of e cenas cortadas da versão final.

Ficha Técnica

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