O documentário musical Emicida: AmarElo – É Tudo pra Ontem transborda as fronteiras do gênero para se consubstanciar em um filme-movimento, e mais ainda, em um filme “Movimente-se”. O artista e rapper Emicida disse numa entrevista que “nossos livros de história são os discos”. Na costura fluida e inteligente, afetiva e afetuosa de música e história, dele próprio e do Brasil, seu filme faz história – uma prova autêntica, estética, arrasadora, de que nosso cinema também é – e pode ser – livros de história.
Parceiro de década nos clipes e produções de Emicida, com a gravadora do rapper, Laboratório Fantasma, Fred Ouro Preto não poderia fazer uma melhor estreia na direção. O fio condutor é o show, mais uma vez histórico, de lançamento do disco AmarElo, no Teatro Municipal de São Paulo, lotado, em novembro de 2019. A partir dele, dos bastidores e de uma vasta pesquisa e preciosas imagens de acervo, Emicida narra com sua voz e sua fala muito próprias, no estilo marcante da periferia de São Paulo, um tracejado original de 100 anos que conecta a Semana de Arte Moderna de 1922 até o presente.
De Mario de Andrade, de quem uma citação abre o filme, a Pablo Vittar e Majur, que fecham o show cantando um bordão sensacional de Belchior em parceria com Emicida, o documentário faz paradas reveladoras e comoventes em três atos: Plantar, Regar e Colher. Neles, há a constatação do apagamento da história negra, que Emicida prefere chamar de invisibilidade. Há o resgate de personalidades como a filósofa ativista Lélia Gonzalez, o ator e escritor Abdias do Nascimento, a atriz Ruth de Souza, o músico Wilson das Neves, entre tantos outros, e Marielle Franco. No meio do espetáculo, Emicida homenageia os membros do MNU (Movimento Negro Unificado), presentes no ato de 1978, em plena ditadura ainda, na escadaria do Teatro Municipal.
O tempo salta do presente para o passado e volta novamente ao hoje, incluindo as ruas esvaziadas da capital paulista pela pandemia. Tudo isso no embalo de canções e versos sempre belos e contagiantes de Emicida, no palco ou no estúdio, onde Fernanda Montenegro declama sob os acordes de “Ismália”, Marcos Valle participa de arranjos, Zeca Pagodinho grava uma parceria, e Gilberto Gil lê as palavras de Ailton Krenak ao som de “É Tudo pra Ontem”. No ritmo sincopado da edição, a fotografia primorosa, os grafismos e as animações são guias para o enlace dos múltiplos sentidos de Emicida: AmarElo – É Tudo pra Ontem.
A liga musical e conceitual que atravessa o filme e fundamenta a visão artística, antropológica, política e tão humana de Emicida é o samba, que ele próprio cruza com seu rap e se insere ainda mais profundamente na tradição musical brasileira. Negra, mas não apenas. Não se luta por liberdade pela metade, diz o rapper, algo que sua trajetória, sua obra e o filme atestam. Emicida invoca e convoca a força do tempo na citação iorubá “Exu matou um pássaro ontem com uma pedra que só chegou hoje”. O futuro, para ele, é “tudo que nóiz tem é nóiz”. Pra ontem.
Trailer
Ficha Técnica
TÃtulo: Emicida: AmarElo – É Tudo pra Ontem
Direção: Fred Ouro Preto
Duração: 89 minutos
PaÃs de Produção/Ano: Brasil, 2020
Elenco: Emicida, Fernanda Montenegro, Gilberto Gil, Zeca Pagodinho, Marcos Valle, Pablo Vittar, Majur
Distribuição: Netflix