Coringa nasceu fazendo história. O Leão de Ouro no Festival de Veneza sinalizou que o filme de origem do popular vilão da DC tinha algo mais para ter caído nas graças do júri de um evento tradicionalmente politizado – e neste ano presidido pela engajada cineasta argentina Lucrecia Martel. Heath Ledger recebeu Oscar póstumo de coadjuvante por Batman: O Cavaleiro das Trevas e Jack Nicholson roubou a cena de Michael Keaton em Batman. O histriônico Cesar Romero virou lenda na série kitsch dos anos 60 e o Coringa de Jared Leto em Esquadrão Suicida a gente deixa pra lá.
O que vai levar Joaquin Phoenix pela quarta vez ao Oscar – concorreu por Gladiador, Johnny & June e O Mestre – é uma interpretação visceral, com quesitos que a Academia tanto preza: transformação física (o astro emagreceu 23 quilos), trama dramática e história de superação. A questão que pode pegar, no caso da estatueta de melhor filme, é que a redenção é moralmente (muito) torta. É irretocável, contudo, a imersão do ator nesse personagem trágico, um monstro erguido por um prefixo de negação: des – desprezo, descaso, desamparo, desafeto, descontentamento, desrespeito, desencanto, desamor.
Coringa sai do posto de coadjuvante de luxo para ser o protagonista da própria história. O diretor, produtor e corroteirista Todd Phillips faz um soberbo estudo de caráter. Entre o bem e o mal há sempre uma escolha. Arthur Fleck, o humorista sem graça, faz a dele. Coringa é épico na complexidade e se descola do universo pop na qual mesmo a soturna trilogia de Christopher Nolan para Batman se insere. É um peixe fora d’água na adaptação dos quadrinhos para o cinema? Não, mas alcança um patamar inédito. É filme de gente grande, para gente grande. Nem pensar em levar crianças, por favor.
Pode causar surpresa Coringa ser um projeto do cineasta que arrancou gargalhadas, e milhões de ingressos, com a franquia Se Beber, Não Case!. Atente, porém, que mesmo no terreno do besteirol Phillips lançava um olhar terno sobre a ovelha negra do grupo de farristas: Alan (Zach Galifianakis), um cômico involuntário, digno de pena e com vários parafusos a menos. Ali estava o protótipo do Coringa, só que do bem. Arthur Fleck é mentalmente perturbado. A risada histérica, desesperada, é fruto de um distúrbio. Os remédios não dão conta de manter sua sanidade e o entorno também não ajuda.
A disparidade social na Gotham City do fim dos anos 1970 é abismal, e a ambientação bebe com fervor na fonte do cinema de Martin Scorsese. O magnata Thomas Wayne (Brett Cullen) é o rosto da elite desinteressada nos menos afortunados. O apresentador de talk show Murray Franklin (Robert De Niro, ator scorsesiano por excelência) ganha audiência ao fazer chacota da vida alheia. Arthur Fleck quer pertencer a um mundo que não tolera gente como ele.
A essência de Coringa está na empatia, ou melhor, na sua ausência. É doído ver a descida do protagonista ao inferno. Arthur Fleck é louco e a reação a tudo o que lhe negaram é digna de um desajustado que precisa se fazer notar. E vai conseguir. Há muito de V de Vingança na maneira como seu grito contra a tirania dos ricos inspira a população. Daí a dizer que o filme incita a violência – como se tem visto em críticas – é simplista e descabido. Arthur, o palhaço incompreendido, renasce como Coringa e Gotham será o seu palco. Esplêndido.
Trailer
Ficha Técnica
TÃtulo: Coringa/Joker
Direção: Todd Phillips
Duração: 121 minutos
PaÃs de Produção/Ano: EUA/Canadá, 2019
Elenco: Joaquin Phoenix, Robert De Niro, Zazie Beetz, Frances Conroy, Brett Cullen, Shea Whigham, Bill Camp
Distribuição: Warner