A inglesa Emerald Fennell entrou para a história como a primeira cineasta estreante a ser indicada ao Oscar de melhor direção, mas a estatueta ela ganhou pelo roteiro original de Bela Vingança, uma produção modesta, rodada em 23 dias, que conquistou mais de 100 prêmios mundo afora. Como uma mulher comum, sem armas, dinheiro ou superpoderes pode fazer justiça contra a violência sexual? Foi em busca de respostas, e inspirada em suas vivências no ambiente universitário, que Emerald concebeu Cassandra, interpretada pela excelente Carey Mulligan (A Escavação).
Aqui vale um parênteses. Cassandra é uma personagem da mitologia grega, figura trágica da Ilíada de Homero. A jovem belíssima é filha do rei de Troia e devota de Apolo, que lhe concede o dom da profecia. Quando ela se recusa a dormir com ele, Apolo lança uma maldição que faz com que ninguém acredite em suas previsões. Ela é vista como louca ao alertar os troianos sobre as desgraças da guerra. Diz a lenda que depois da invasão de Troia, Cassandra foi entregue como espólio de guerra ao rei grego Agamenon. Então temos o arquétipo da mulher incompreendida, desacreditada e objetificada, que deu origem ao que a psicologia chama de Complexo de Cassandra.
Em Bela Vingança, Cassandra, ou Cassie, irrompe em cena completamente embriagada em um balada e é amparada por Jerry (Adam Brody), um executivo bem-apessoado e com jeito de bom moço que se oferece para levá-la de táxi para casa. Em vez disso, para em seu apartamento e aproveita o “apagão” dela para fazer sexo, mas toma o maior susto quando Cassie se revela completamente sóbria e o impede de abusá-la. A protagonista prega essa peça em potenciais estupradores semanalmente e anota os nomes em um caderno. Sua motivação é desvendada aos poucos. O enredo vai abrindo as janelas do passado até o quadro do horror que a levou até ali tomar forma. Mas como a ideia é esmiuçar o filme, spoilers são necessários.
Cassie abandonou a faculdade de medicina depois de uma tragédia com a melhor amiga de infância, Nina, que estava bêbada quando foi violentada durante uma festa e sucumbiu por não conseguir se fazer ouvir. A razão de sua morte tem nome, cultura do estupro, uma expressão usada nos anos 1970 por feministas que combatiam a naturalização do violência física e psicológica contra a mulher como uma questão moral e cultural. “Mulheres assim se colocam em perigo”, comenta um dos amigos de Jerry. Também cansamos de ouvir por aí “ela provocou”, “ela estava de saia curta”, “ela não deveria sair sozinha”, “ela não deveria estar na rua naquela hora” ou “ela não deveria ter bebido”.
A desgraça de Nina é a maldição de Cassie, que agora trabalha em um café, mora com os pais (Clancy Brown e Jennifer Coolidge) e se consome pela culpa por não ter salvo amiga. Essa é uma mulher em suspensão, que abre mão de si mesma – não se lembra do próprio aniversário – e vive um círculo vicioso que a impede de seguir adiante. A estagnação física e psicológica se materializa na direção de arte, com sua moradia decorada com artefatos antigos e antiquados.
Quando sai a campo em missão “educativa”, Cassie veste-se e age como uma mulher fatal e dona de si. É um momento catártico, porém breve. No dia a dia, ela chupa pirulito, usa rosa e estampas florais, e pinta as unhas nas cores de balas de goma – é a garota sonhadora e romântica que ainda habita a alma da nossa protagonista. Pois a chance de amar aparece no reencontro com Ryan (Bo Burnham), ex-colega de faculdade, agora cirurgião pediátrico. A relação promove a alternância do drama para a comédia romântica, com direito a dancinha ao som de “Stars are Blind”, de Paris Hilton.
É Ryan, porém, quem atualiza Cassie sobre o que andam fazendo outros alunos, entre eles Al Monroe (Chris Lowell), o algoz de Nina. A partir daí a trama envereda para o thriller de humor negro, pois pescar incautos em bares já não basta. Cassie vai finalmente executar seu plano de vingança, arquitetado minuciosamente em quatro capítulos, um para cada alvo: a amiga que assistiu à violência e nada fez, a reitora da escola que deu o benefício da dúvida ao acusado, o advogado que perseguiu e coagiu Nina até ela desistir do caso e, claro, Al Monroe. Durante a intrincada jornada de vendeta, Cassie recebe um golpe de misericórdia emocional que a coloca de volta na rota de redenção autodestrutiva.
A diretora Emerald Fennell se debruça sobre um tema nevrálgico, incômodo, mas o embala em um pacote palatável, com trilha sonora pop e uma paleta de cores simbólica na dualidade lúdica do azul e do rosa. A religiosidade é outro elemento fundamental da narrativa, com imagens angelicais que emolduram Cassie ora com asas, ora com auréolas. O advogado arrependido feito por Alfred Molina curva-se a seus pés como num confessionário e recebe o perdão, a benção da mão que lhe toca as costas.
Se na cena inicial Cassie aparece no sofá de couro vermelho com os braços abertos e as pernas estiradas como o Cristo na Cruz, mas também como um pedaço de carne a ser devorado, no climático ato final sua peruca é uma difusão de cores que contrastam com o branco puro da enfermeira – é uma menina travessa nosso anjo vingador. O desfecho é provocador, de tirar o fôlego, extasiante para alguns, trágico e cruel para mim. Sua vitória tem sabor de derrota. Cassie entrou para a estatística como mais uma vítima do feminicídio.
Trailer
Ficha Técnica
TÃtulo: Bela Vingança/Promising Young Woman
Direção: Emerald Fennell
Duração: 113 minutos
PaÃs de Produção/Ano: Reino Unido/EUA, 2020
Elenco: Carey Mulligan, Bo Burnham, Adam Brody, Jennifer Coolidge, Alison Brie, Clancy Brown, Chris Lowell, Christopher Mintz-Plasse, Laverne Cox
Distribuição: Universal Pictures