domingo, 15 de junho de 2025
Cinema Festival

Balanço Gramado 23: Reino das mulheres?


Balanço Gramado 23: Reino das mulheres?
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A 51ª edição do Festival de Cinema de Gramado realizou um feito inédito. Dedicou as honrarias exclusivamente à mulheres que deixaram sua marca na história do audiovisual brasileiro. Da nova geração, as atrizes Ingrid Guimarães e Alice Braga receberam os troféus Cidade de Gramado e Kikito de Cristal, respectivamente. A produtora Lucy Barreto foi laureada com o prêmio Eduardo Abelin, e as veteranas Laura Cardoso e Léa Garcia foram celebradas com o Troféu Oscarito, a mais antiga homenagem entregue pelo festival. Marcelo, filho de Léa, representou a mãe na cerimônia, após a morte repentina da atriz, aos 90 anos, na madrugada anterior à premiação. Foram noites de muita emoção no Palácio dos Festivais.   

Bastou a Mostra Competitiva começar para essa representatividade se fazer notar também na curadoria de longas-metragens, assinada pela atriz argentina Soledad Villamil, o ator Caio Blat e o jornalista e crítico Marcos Santuario. Seis longas disputaram o Kikito: Angela, de Hugo Prata, Tia Virgínia, de Fabio Meira, Mais Pesado é o Céu, de Petrus Cariry, O Barulho da Noite, de Eva Pereira, Uma Família Feliz, de José Eduardo Belmonte, e Mussum, O Filmis, de Silvio Guindane. Este último, grande vencedor da 51ª edição, com seis Kikitos, é o único com um protagonista irrefutável, Aílton Graça, eleito melhor ator.

Balanço Gramado 23: Reino das mulheres?

Matheus Nachtergaele abre Mais Pesado é o Céu no primeiro plano, mas é Ana Luiza Rios quem toma à frente como agente da ação. Marcos Palmeira vive o patriarca de O Barulho da Noite, porém às tantas sai de cena e deixa o palco livre para Emanuelle Araújo. Grazi Massafera e Reynaldo Gianecchini iniciam o jogo de máscaras do thriller Uma Família Feliz em pé de igualdade. Não demora, contudo, para o faro investigativo da protagonista colocá-la na dianteira narrativa. Como sinalizam os títulos, Isis Valverde e Vera Holtz prescindem de protagonistas homens e reinam absolutas em Angela e Tia Virgínia.

Se as homenagens louvam ao celebrar e evidenciar personalidades femininas na trajetória do audiovisual nacional, o retrato da mulher nos longas-metragens desta edição causam preocupação. 100% das protagonistas estão sob o jugo de uma sociedade conservadora e patriarcal. Encontram-se imersas em realidades manchadas pelo machismo estrutural, independente do território – urbano ou rural –, da classe – alta, média ou baixa –, e da temporalidade – passado ou presente. O painel da opressão feminina se costura em uma tapeçaria vasta e assombrosa. Impressiona, no entanto, o olhar turvo de alguns cineastas cujas narrativas imagéticas antagonizam com seus discursos verbais em defesa dos direitos da mulher.

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Senão, vejamos. Na onda do true crime, Angela (trailer abaixo) reconstrói a etapa final da vida da socialite Ângela Diniz. Chamada de Pantera de Minas, foi assassinada, aos 32 anos, com três tiros no rosto e um na nuca, desferidos pelo companheiro, o empresário Raul “Doca” Street, em 1976. O recorte feito pelo diretor Hugo Prata, a partir do roteiro de Duda de Almeida, foca a relação apaixonada e tempestuosa do casal. Interpretados por Isis Valverde e Gabriel Braga Nunes, e nas palavras do próprio cineasta, os amantes protagonizam cenas de “sexo rock and roll”. Os malabarismos sexuais tomam boa parte da trama, assim como as sequências de violência física.

Em que pese a entrega dramática da atriz, falta ao filme o estofo humano que demanda a personagem. Afora a abordagem do sofrimento da mãe que abriu mão da guarda dos três filhos para conseguir o desquite (hoje, separação judicial), sobra uma beldade mimada, egoísta, voluptuosa, indomável e até cruel. Angela irrompe em cena cancelada pela alta-sociedade. O julgamento do crime não está no filme, mas é famoso o triunfo do advogado de Doca ao se valer da tese de “legítima defesa da honra”, argumento finalmente, e tardiamente, declarado inconstitucional neste ano de 2023 pelo Supremo Tribunal Federal. “A sociedade ainda hoje é machista, sexista, misógina e mata mulheres apenas porque elas querem ser donas de suas vidas", diz o cirúrgico relato da ministra Cármen Lúcia no site oficial do tribunal.

Balanço Gramado 23: Reino das mulheres?

Segundo colocado, com cinco prêmios, entre eles os Kikitos de roteiro, para o também diretor Fabio Meira, e de atriz, para a incomparável Vera Holtz, Tia Virgínia é também sobre uma mulher dona de si, pero no mucho. De três irmãs, Virgínia foi a única que andou na contramão dos padrões estabelecidos para as mulheres de sua geração. Estudou, se formou, não casou e não teve filhos. Quanta ousadia! O olhar enviesado das irmãs, interpretadas por Arlete Salles e Louise Cardoso, vale como veredicto: Virgínia não bate bem da cabeça. O julgamento inclui condenação. Ficou para ela a missão de abrir mão da própria vida para cuidar dos pais. Agora resta a mãe (Vera Valdez, esplêndida, recebeu menção honrosa do júri), que não mais se comunica oralmente, mas cujos olhos dizem muito.

Tudo se passa em um único dia, durante os preparativos para a noite de Natal no casarão dos pais. O antigo relógio de parede faz tic-tac, mas chegados os convidados – irmãs, cunhado (Antonio Pitanga) e dois sobrinhos –, o tempo parece entrar em suspensão. Tia Virgínia é universal e atemporal na tragicômica ciranda de afetos e desafetos desse núcleo familiar com escassez de sororidade. Salvo a sintonia da protagonista com a sobrinha (Daniela Fontan), sobra incompreensão e opressão sobre essa mulher idosa, ainda em busca dos próprios sonhos. Deliciosamente felliniano, o desfecho é um grito, ou melhor, um riso de liberdade. Não espanta a imediata empatia do público. Ao fim da sessão, o comentário geral era “eu tenho uma tia Virgínia”.

Balanço Gramado 23: Reino das mulheres?

O cineasta Petrus Cariry promove uma instigante inversão de papéis em Mais Pesado é o Céu, vencedor dos Kikitos de melhor direção, fotografia e montagem. Matheus Nachtergaele é Antônio, que volta ao sertão cearense pós-temporada em São Paulo e com planos de se acertar na pesca de caranguejo. A narrativa se desenha como road movie, mas o freio é puxado quando cruza com Teresa, personagem que rendeu prêmio especial do júri para Ana Luiza Rios. Também andarilha, ela acolhe um bebê abandonado, se depara com Antônio e, com ajuda de uma desconhecida (Silvia Buarque), encontra um teto para (quem sabe) forjar uma família.

Repare, no entanto, que o empreendedorismo do homem cai por terra no momento em que coloca os pés no casebre. De protagonista, Antônio torna-se coadjuvante, sujeito passivo. Sua rotina passa a ser ninar o bebê e olhar placidamente pela janela. Em tom fabular, o cineasta transfere à Teresa a função de provedora. Naquela terra de ninguém, ela se submete a todo tipo de humilhação, abuso e violência em mãos masculinas, para garantir alimento pelo menos para o bebê. Seu confronto com um serial killer ao final é um catártico pé no pedal, de volta à estrada e livre do encosto masculino. 

Balanço Gramado 23: Reino das mulheres?

Da aridez do sertão para um condomínio de luxo em Curitiba, observa-se o machismo escuso em Uma Família Feliz. O diretor José Eduardo Belmonte reúne Grazi Massafera e Reynaldo Gianecchini em uma típica família margarina, com pormenores que se revelam no decorrer da história. O fato é que esse clã acaba de aumentar. As duas irmãs gêmeas, de 10 anos, ganham um irmãozinho. Tudo lindo? Que nada. O suspense ergue-se pela suspeita de que alguém esteja machucando as crianças. No geral, o cineasta faz bom uso dos signos do thriller, mas o buraco é mais embaixo.

Em pleno puerpério, a personagem moldada com sensibilidade por Grazi é uma mulher enigmática. Fica a dúvida entre deprimida ou psicopata. Sobre o marido recai, inclusive, a desconfiança de abuso sexual. O que não se discute, porém, é o nocivo posicionamento dele. São recorrentes os comentários depreciativos sobre o trabalho da mulher como artesã de bonecas – um tanto bizarras, por sinal. E acumulam cobranças para que ela abandone a profissão e se restrinja aos afazeres domésticos. Novamente, a sororidade é deficitária. Ver a protagonista ferozmente achincalhada pelas vizinhas é revoltante. O final é símbolo dos becos sem saída de uma sociedade que julga e condena à luz do preconceito.

Balanço Gramado 23: Reino das mulheres?

Nada se aproxima, no entanto, das contradições morais de O Barulho da Noite, que fecha o sexteto de longas da 51ª edição. A diretora e roteirista Eva Pereira foi enfática na coletiva de imprensa, na manhã seguinte à exibição do filme. Com todo o mérito de ser a primeira cineasta a emplacar um longa do Tocantins na competição do festival, Eva afirma ter feito um libelo pelo fim da violência contra a mulher, em especial a sexual. Foram mais de quatro anos de pesquisa, que serviu de base para o drama que assola o casal formado pelos personagens de Marcos Palmeira e Emanuelle Araújo, e as duas filhas pequenas. É pavorosa a cadeia de eventos que se desenrola após a chegada de um parente do pai.

Tudo de abominável que acomete essa gente batalhadora e religiosa tem um esdrúxulo catalisador: o desejo feminino. O calvário se deflagra no instante em que a protagonista trai o marido. É espantoso que uma cineasta que defende a mulher com tanta veemência tenha sucumbido (é provável, sem consciência) ao próprio machismo. Os horrores da ruína daquele lar beiram o insuportável e nem valem ser descritos. Punição para o desejo feminino? Que atraso...

Balanço Gramado 23: Reino das mulheres?

Ao destacar personalidades femininas em suas homenagens, Gramado 2023 incentiva a representatividade e a diversidade na cultura audiovisual. O mesmo mote rege a curadoria. A seleção de longas-metragens brasileiros da 51ª edição forma, assim, um todo coeso. É preciso refletir, porém, sobre o contraste entre o domínio feminino na programação e a situação da mulher retratada na tela. Sim, as mulheres reinaram no palco do Palácio dos Festivais, mas as realidades que se descortinam nos filmes são um atestado de que a autêntica emancipação feminina tem ainda um longo e pedregoso caminho a percorrer.

Imagens:Reprodução/Divulgação




Trailer

Ficha Técnica

Título: Balanço Gramado 23: Reino das mulheres?
Direção: Vários
Duração: 0 minutos

País de Produção/Ano: Brasil, 2023
Elenco: Vários
Distribuição: Festival de Gramado

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Suzana Uchôa Itiberê

Suzana Uchôa Itiberê

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Cinéfila incorrigível, jornalista de plantão, crítica de cinema (não muito) chatinha e editora caprichosa. Cria do jornal O Estado de S. Paulo, trabalhou nas revistas TVA, Set, Istoé Gente e foi cofundadora da revista Preview. Membro da Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema).