A Felicidade Não Se Compra

O clássico do cineasta siciliano Frank Capra (1897-1991) não poderia ser mais oportuno neste Natal de um 2020 marcado e assolado por uma pandemia global. Filmes clássicos são assim, subvertem o tempo, renovam-se em cada espectador, revolucionam o olhar, seja técnico, seja humano. Frequentemente, os dois. A Felicidade Não Se Compra é assim, e sua mensagem solidária e humanista tem tanto para dizer hoje sobre as pessoas e o mundo quanto a biografia de seu diretor.

Frank Capra imigrou da Itália para a Califórnia, nos Estados Unidos, aos 6 anos, no porão escuro e sem assepsia de um navio, daqueles que achamos que só existem no cinema. Entregou jornal para pagar os estudos. O talento e a dedicação o levaram à indicação de seis prêmios Oscar de melhor diretor - na chamada Época de Ouro de Hollywood, povoada de incontestáveis talentos. Ganhou três, com Aconteceu Naquela Noite (1934), O Galante Mr. Deeds (1936) e Do Mundo Nada Se Leva (1938). A abordagem crítica dos ambientes sociais e simpática à dignidade humana transformaram Capra e sua obra em símbolo do “sonho americano”, uma visão tacanha e reducionista que impôs ao cineasta um ostracismo precoce das telas e da apreciação dos “entendidos” de cinema.

Em 1946, na efervescência otimista do pós-Segunda Guerra Mundial, Capra, que foi para o front documentar o conflito bélico com suas próprias lentes, engendrou A Felicidade Não Se Compra inspirado na história curta The Greatest Gift (O Maior Presente), escrita em 1943 por Philip Van Doren Stern (1900-1984) como uma mensagem de Natal para seus amigos. No filme, George Bailey (James Stewart, Núpcias de Escândalo) é um homem e cidadão compassivo por excelência, atributo que herdou do pai e aperfeiçoou com estudos e experiência.

Na pacata Bedford Falls, George perdeu a audição, apanhou, desistiu do sonho de viajar o mundo e ser arquiteto, respectivamente para salvar o irmão, o patrão e a empresa do pai, uma cooperativa de empréstimos e habitação popular. Casou-se com a encantadora Mary (Donna Reed, A Um Passo da Eternidade), e a família de quatro filhos mora na casa dos sonhos da sua esposa. Há apenas um morador de Bedford Falls que não admira e respeita George, o banqueiro mesquinho Sr. Potter (Lionel Barrymore, Uma Alma Livre). Na véspera de Natal, Potter dá um jeito desleal de quebrar a cooperativa, o que pode até levar George à prisão.

Desolado, George percebe que vale mais morto do que vivo, já que sua apólice de seguro de vida pode pagar suas dívidas e deixar sua família bem. É quando o simpático anjo Clarence (Henry Travers, Rosa de Esperança) é designado para ajudar George, e assim ganhar, finalmente, suas asas angelicais. A estratégia de Clarence é simples, para uma pessoa do bem como George: mostrar a ele como seria a vida em Bedford Falls se ele não tivesse nascido.

É um toque singelo, genial e comovente de Capra para simbolizar, isto sim, o valor inestimável de cada pessoa nos ambientes em que circula na superfície do nosso planeta Terra. Grande diretor de atores, o cineasta extrai performances memoráveis de James Stewart, Donna Reed e Lionel Barrymore, seus protagonistas, e de todo o primoroso elenco de coadjuvantes numa galeria de personagens adoráveis. Boa parte dos atores são figuras tarimbadas dos filmes de Capra. É o conceito de star system em ação.

Mesmo com cinco indicações ao Oscar, inclusive de melhor filme, diretor e ator, A Felicidade Não Se Compra não se deu bem nas bilheterias, o que causou prejuízo à produtora, a independente Liberty, de Capra e William Wyler (Os Melhores Anos de Nossas Vidas). Uma complexa disputa de direitos autorais levou a produção a cair no domínio público de 1974 a 1993. Exibido na TV norte-americana com frequência, se converteu no mais icônico filme de Natal. Na lista de Melhores Filmes do AFI (American Film Institute), figura entre o Top 20, mas na lista de Filmes Mais Inspiradores, ocupa o primeiro lugar. O longevo Frank Capra considerava esse o seu melhor trabalho. Com ele, concordam muitos. Nós também, e não apenas no Natal. O filme preferido de Capra pode aquecer o coração o ano todo, uma vida inteira. Como todo grande clássico do cinema.

Feliz Natal!

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