O Milagre

Enquanto a câmera percorre cenários montados em um estúdio, uma narradora que se revela adiante diz que os personagens de O Milagre “acreditam em suas histórias com total devoção”. Nesta pequena obra-prima da Netflix, devoção é também a palavra que nutre uma família, ou melhor, os religiosos habitantes de um vilarejo na Irlanda de 1862. É ali que desembarca a enfermeira inglesa Lib, interpretada por Florence Pugh. A narradora enfatiza a nacionalidade, porque os irlandeses culpam a Inglaterra pela Grande Fome que matou cerca de 25% da população do país entre 1845 e 1849.

Embora persona non grata, Lib está ali a convite de um comitê para ajudar a desvendar um fenômeno supostamente sobrenatural. Por duas semanas, ela deve alternar turnos com uma freira na vigília da adolescente Anna. A missão é descobrir se a garota, que a família diz estar em jejum há quatro meses, continua viva por milagre ou farsa. A jornada é conduzida pelo chileno Sebastián Lelio, que tem feito destemidos mergulhos no universo feminino em obras premiadas como Gloria (2013), Desobediência (2017) e Uma Mulher Fantástica (2017).

Em O Milagre, ele adapta o romance de Emma Donoghue, autora do livro que deu origem a O Quarto de Jack (2015), sobre a mãe sequestrada que foge com o filho nascido em cativeiro. A maternidade é novamente o cerne narrativo, em tudo o que tem de mundano e sagrado. Nas poucas horas de descanso, Lib “viaja” ao tomar xarope de láudano, na tentativa de aplacar uma dor sem remédio. Se a relação com Anna é maternal, com a mãe da menina, Rosaleen, é de desconfiança. Lib acredita que a chave do mistério está nessa mulher de poucas palavras. 

Curiosidade: mãe e filha são interpretadas por mãe e filha na vida real, Elaine Cassidy e revelação Kíla Lord Cassidy. Faces distintas do instinto materno afloram aos olhos do espectador, que se vê imerso em uma realidade pictórica, lindamente pincelada pela diretora de fotografia Ari Wegner – indicada ao Oscar por Ataque dos Cães. Não menos sensoriais são os acordes da inebriante trilha sonora de Matthew Herbert, colaborador frequente do diretor.

Entre as presenças masculinas, atende para o jornalista Will (Tom Burke), que se aproxima de Lib para acessar Anna. Unidos na busca pela verdade – por sinal, tenebrosa –, os dois são agentes de um desfecho sublime. Sensação no terror Midsommar, indicada ao Oscar por Adoráveis Mulheres, “rouba cena” em Viúva Negra e o melhor de Não Se Preocupe, Querida, Florence Pugh alcança o divino e contagia todo o elenco. Pautado pela ilusão, O Milagre emana autenticidade.

Ficha Técnica

Assista Agora!