Não Olhe para Cima

Desde que Charlie Chaplin se travestiu de Hitler e brincou com o globo terrestre em O Grande Ditador (1940), seu primeiro filme falado, a sátira ganhou voz na sétima arte. Para fazer rir, claro, mas também para escancarar e criticar a realidade em um espetáculo burlesco em que o absurdo serve de antídoto para a censura. De lá para cá, Hollywood produziu algumas pérolas do gênero. Entre elas o premiado A Grande Aposta (2016), no qual o diretor Adam McKay retrata o “pré-apocalipse” econômico de 2008 pela saga de um grupo de investidores do mercado imobiliário. A pandemia não estava no horizonte quando McKay escreveu Não Olhe para Cima, a nova sensação da Netflix, mas o enredo atinge alvos certeiros do aqui e agora. Negacionismo, politização da ciência, ditadura das redes sociais, manipulação da verdade, cultura de cancelamento e, como não poderia faltar, polarização. 

Jennifer Lawrence é a candidata a doutorado em astronomia que avisa seu orientador, Leonardo DiCaprio, que identificou um cometa em rota de colisão com a Terra. O impacto deve ocorrer em seis meses e alguns dias. O tamanho do astro, entre cinco a dez quilômetros de diâmetro, é suficiente para provocar a extinção do planeta. A dupla pena para levar a notícia à presidente vivida por Meryl Streep, que desacredita os cientistas e faz pouco caso do iminente desastre. Jonah Hill é o odioso filhinho mimado e chefe de gabinete da mamãe. Diante do descaso governamental, os astrônomos apelam para a mídia fazer o alerta. Cate Blanchett e Tyler Perry interpretam os apresentadores sem noção que seguem a máxima do “está tudo bem”, e reagem sem alarde ao anúncio do fim do mundo. A verdade parece não ter vez em Não Olhe para Cima.

Timothée Chalamet, a cantora Ariana Grande e Ron Perlman estão entre os coadjuvantes de luxo, mas quem rouba a cena é Mark Rylance, de peruca branca. Seu personagem é um guru da tecnologia e empreendedor que tem rendido comparações a Elon Musk, o CEO da Tesla e da Space X. É dele que vem a ideia de dar ao cometa destino diferente do planejado pelos astrônomos. E é através dele que o cineasta levanta a questão moral que está no cerne da obra. McKay diz que seu filme examina “como nós invadimos e lucramos com as formas pelas quais nos comunicamos por redes sociais, mídias etc. Tudo agora é uma troca de vendas em oposição a um discurso real”.

O público tem aplaudido Não Olhe para Cima e a crítica está dividida. Alguns reclamam que falta riso na sátira. Verdade, o sarcasmo aqui não é leve porque o estado das coisas não é leve nem promissor. Outros criticam os personagens caricatos. Será que são mesmo? Ou basta entrar nas redes sociais e assistir à TV para se deparar com jornalistas oportunistas ou influencers que dizem absurdos para atrair seguidores? Sem o distanciamento que só o tempo proporciona, o grotesco do presente causa ojeriza, mas assim o construímos. Não Olhe para Cima é um tapa na cara de quem ainda se recusa a enxergar o estranho mundo novo do século 21.

Ficha Técnica

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