Apresentando os Ricardos

Entre 1951 e 1957, os norte-americanos paravam tudo nas noites de segunda-feira para assistir à sitcom I Love Lucy. Se hoje um seriado badalado bate 10, 15 milhões de público, Lucille Ball e o marido Desi Arnaz atraíam 60 milhões como Lucy e Ricky Ricardo. É um assombro. Foi uma comoção quando anunciaram que o casal ternura teria sua história contada em Apresentando os Ricardos (Being the Ricardos), produção da Amazon Prime Video. Mas bastou o nome de Nicole Kidman ser divulgado como a protagonista para os fãs protestarem. Injusto. A atriz australiana incorpora a comediante com tanta alma que ganhou o “selo de qualidade” da filha dos astros, Lucie Arnaz. Nicole, seu parceiro em cena Javier Bardem e Aaron Sorkin concorrem ao Globo de Ouro. Pode apostar que os três entrarão fortes na temporada de premiação.

É a terceira empreitada de Sorkin na direção, mas é pelo roteiro que está no páreo e foi como autor de A Rede Social, O Homem Que Mudou o Jogo e Os 7 de Chicago que se consagrou em Hollywood. O recorte narrativo triangular que faz em Apresentando os Ricardos é golpe de mestre. A trama se desenrola durante uma tumultuada semana de 1953, quando Lucille e Arnaz enfrentam um triplo imbróglio. Em plena caça às bruxas macarthista, o colunista de fofocas Walter Winchell revela que a atriz foi filiada ao Partido Comunista. A gravidez do segundo filho ameaça a produção do seriado, pois os patrocinadores não a querem barriguda em cena. E a cereja do bolo: a foto de uma suposta traição de Arnaz ganha destaque na imprensa sensacionalista.

O três eventos são reais, mas ocorreram em tempos diferentes. O enredo faz bom uso da licença poética ao reuni-los em uma tríade que insere o espectador nos bastidores do programa, na vida pública e privada do lendário casal. Os ensaios da gravação de I Love Lucy e a dinâmica da estrela com roteiristas, produtores e diretores dão dimensão de seu talento na concepção dos esquetes de humor. J.K. Simons e Nina Arianda estão ótimos como as coestrelas da série, William Frawley e Vivian Vance. Com uma prótese facial sutil, Nicole Kidman recria com perfeição os trejeitos de Lucy. Observe, porém, como atrás das câmeras a personagem abandona o estilo faceira e assume a postura da profissional geniosa e genial. Lucille não hesitava em interferir na produção, quando na verdade era Arnaz quem tinha crédito de produtor.

A relação amorosa e a parceria profissional ganham autenticidade na química iluminada entre Nicole e Bardem. Estão estampados na tela o tesão, a determinação, a admiração mútua, e também as idiossincrasias, o desencontro de ideais familiares e uma velada competição pelos holofotes. Livre das amarras da cinebiografia clássica, Sorkin não se limita à honraria. Transforma Lucille/Lucy e Arnaz/Ricky em símbolos e arquétipos do feminino e do masculino. Machismo, ditadura da beleza, fake news, guerra pela audiência... Tá tudo ali no show business da América dos anos 1950. Tá tudo aqui no mundo digitalizado de hoje.

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