A Pura Verdade

Não é exagero dizer que Sir Kenneth Branagh é o legítimo herdeiro de Sir Laurence Olivier nas adaptações de William Shakespeare, ora como roteirista, produtor, diretor e ator, frequentemente em todos esses papéis. Por Henrique V, sua estreia atrás das câmeras, concorreu ao Oscar de direção e de melhor ator. Foi Iago na versão de Othello comandada por Oliver Parker e disputou o Oscar pelo roteiro de Hamlet, que ainda dirigiu e protagonizou com brilhantismo. Em A Pura Verdade, ele interpreta ninguém menos que o próprio bardo inglês. A direção é sua, mas a pena ficou nas mãos de Ben Elton, seu parceiro de elenco no adorável Muito Barulho por Nada (1993), que também dirigiu. Elton é criador da série Upstart Crown, que gira em torno da vida de Shakespeare à frente de seu Globe Theatre, em Londres.

A Pura Verdade começa com o incêndio que destruiu o famoso teatro em 1613, durante a apresentação de Henry VIII, pelo tiro de um canhão cenográfico. A tragédia provocou a aposentadoria precoce de Shakespeare e sua volta para a casa da família, em Stratford-upon-Avon, no interior da Inglaterra. O fato é histórico, mas a partir daí o roteirista Ben Elton toma algumas liberdades poéticas para imaginar o reencontro de Shakespeare (Branagh) com a esposa Anne (Judi Dench, A Espiã Vermelha), as filhas Susannah (Lydia Wilson, Questão de Tempo) e Judith (Kathryn Wilder), e a memória do filho Hamnet, morto vítima da praga aos 11 anos. Isso sem contar toda a sua pequena, invejosa e fofoqueira cidade natal.

Nem o maior escritor da história da literatura está imune aos (muitos) dramas familiares, ao preconceito pelas raízes pouco nobres, ao fracasso por não ter um herdeiro homem, a paixões platônicas. E enfrenta tudo isso enquanto dedica-se a criar um jardim para homenagear Hamnet. A humanidade e o sentimento que Branagh imprime a seu Shakespeare maduro e sofrido, mesmo debaixo de uma maquiagem pesada e um nariz avantajado que lembra Cyrano de Bergerac, é o pilar em torno do qual o filme se desenvolve. Mas o ator e diretor, generoso, faz seu elenco brilhar, com destaque para Judi Dench e Ian McKellen (A Grande Mentira), numa participação especial já antológica em torno do Soneto 29, um dos mais célebres escritos por Shakespeare.

A produção impecável, da fotografia de Zac Nicholson (A Sociedade Literária e a Torta de Casca de Batata) à trilha sonora do veterano Patrick Doyle (Razão e Sensibilidade), permite que Branagh desenhe metodicamente belíssimas cenas e sequências. Aproveitando a já fascinante paisagem outonal idílica das locações na vila Dorney, no sudeste da Inglaterra, ele cria um contemplativo jogo de luz e sombras para traduzir o ocaso da vida. Em se tratando de Shakespeare, a velhice chega acompanhada ainda de algumas passagens preciosas sobre a arte de escrever e de criar.    

Ficha Técnica

Assista Agora!