Depois de vinte anos na prisão, Daniel (Gérard Meylan, Cézanne e Eu) retorna para a ensolarada Marselha e retoma contato com a família. Quando sua ex-mulher, Sylvie (Ariane Ascaride, Uma Casa à Beira Mar) lê o caderno de anotações dele, pergunta o que elas são. “Haicais”, ele responde. “Para que servem?”, ela pergunta novamente. “Para buscar os bons momentos. E registrá-los para a eternidade”, explica Daniel, sobre os poemas de três versos de origem japonesa, que costumam tratar da relação entre o ser humano e a natureza. No entanto, na selva de pedra das grandes cidades, nos tempos atuais, na família deles, bons momentos não são abundantes.

Selecionado para o Festival de Veneza, no qual Ariane Ascaride (O Fio de Ariane) venceu o prêmio de melhor atriz, O Mundo de Gloria dá continuidade à engajada, aguda e crítica observação social, marcas da obra de Robert Guédiguian (Uma Casa à Beira Mar), cuja estrutura lembra a dos dramas sociais do premiado cineasta inglês Ken Loach (Você Não Estava Aqui). O diretor francês trabalha com uma trupe de atores e equipe de produção fiéis. Com sua esposa, a atriz Ariane Ascaride, está na vigésima parceria. Do elenco principal, os atores que menos trabalharam com Guédiguian estão na quarta colaboração com o diretor.

Afinidade e familiaridade contribuem muito para as preciosas nuances das atuações que são a alma do filme, além do ótimo roteiro, coescrito pelo cineasta. Após a condenação de Daniel, jovem, sozinha e com uma filha bebê para criar, Sylvie casou-se novamente com Richard (Jean-Pierre Darrousin, Um Amor em Paris). Eles criam Mathilda (Anaïs Demoustier, Através do Fogo) sem diferenças com a filha do casal, Aurore (Lola Naymark, Uma História de Loucura). No início do filme, Mathilda dá à luz a Gloria, acolhida pela família reunida no hospital. A pedido do marido, Sylvie avisa Daniel do nascimento de sua neta.

Meses depois, Mathilda consegue trabalho temporário de balconista, sabendo que provavelmente será substituída após o término do contrato, para evitar encargos para a dona da loja. Seu marido, Nicolas (Robinson Stévenin), motorista cinco estrelas da Uber, é atacado por taxistas que lhe quebram o braço. Sylvie sofre represálias por não querer se juntar à greve dos funcionários da empresa de limpeza em que trabalha à noite, e Richard é suspenso por falar ao celular enquanto dirigia o ônibus municipal. É com a caçula Aurore e seu marido Bruno (Grégoire Leprince-Ringuet) que a família pensa que pode contar. Bem-sucedidos, eles estão prestes a inaugurar a segunda loja de seu comércio pouco ético – compram o que quer que seja, objetos, eletrodomésticos, bolsas, malas por um preço ínfimo de clientes desesperados, reparados por técnicos num galpão clandestino para revenda.

Cada um desses infortúnios se entrelaça com ainda outros ciclos do determinismo econômico de um sistema exploratório e do conflito familiar e de gerações. Na denúncia pungente e melancólica de Guédiguian à beira-mar, embalada por composições de Ravel, os bons momentos se impõem nas relações genuinamente humanas, solidárias e acolhedoras, breves e escassas, mas comoventes como a simplicidade e o lirismo dos haicais. Na película, eles estão registrados para a eternidade, para nos lembrar que deveriam ser eles, afinal, o destino de Gloria.

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