Festival Varilux 2019: Recomeços

Três dos melhores filmes do Festival Varilux de Cinema Francês 2019 trazem abordagens sinceras e sensíveis do recomeçar. Um Homem Fiel faz um mergulho no universo feminino para, na verdade, iluminar um homem (papel do também diretor Louis Garrel) que precisa achar a si mesmo para colocar a vida nos trilhos.

Juliette Binoche é a grande atração de Quem Você Pensa Que Sou, como uma mulher carente que forja um perfil falso no Facebook e se envolve virtualmente com um rapaz muito mais jovem. Essa trama de farsa tem boas reviravoltas e fala com delicadeza da dificuldade de se reerguer após o divórcio. E o que dizer da história de superação de Através do Fogo, que tem o excelente Pierre Niney na pele de um bombeiro que terá de reaprender a viver depois de um grave acidente de trabalho.

Um Homem Fiel/Lhomme Fidèle

Um dos expoentes da nova geração do cinema francês, o muso Louis Garrel é conhecido no Brasil por filmes como O Formidável, em que interpreta Jean-Luc Godard, Um Instante de Amor, em que faz par com Marion Cotillard, e O Ciúme, no qual é dirigido pelo pai, o cultuado cineasta Phillippe Garrel. Com o mestre, o novato aprendeu tudo sobre o cinema introspectivo e focado nos sentimentos, que agora põe em prática na própria trajetória atrás das câmeras.

Foi assim com o primeiro longa, Dois Amigos, e se intensifica em Um Homem Fiel, um dos melhores – senão o melhor – filme do Festival Varilux 2019. Garrel assina o roteiro em parceria com o veterano Jean-Claude Carrière (No Portal da Eternidade), e esse texto primoroso espanta pela percepção do universo feminino. Também no elenco, Garrel interpreta Abel, cuja esposa, Marianne (Laetitia Casta, sua mulher na vida real), diz que está grávida de Paul, o melhor amigo dele. Mais: o casamento está marcado e Abel tem alguns dias para deixar o apartamento. O anúncio é feito como se fosse a coisa mais normal do mundo, e esse tom bem-humorado leva a trama, e o protagonista, adiante.

Oito anos depois, Paul morre e Abel se reaproxima de Marianne e do filho dela, Joseph (Joseph Engel), que lhe diz (com a maior naturalidade) que a mãe matou o pai envenenado. Quem está de olho em Abel também é a irmã do morto, Ève (Lily-Rose Depp, filha de Johnny Depp e Vanessa Paradis), que nutre um amor platônico por ele desde criança e agora decide avançar. Como alguém que se deixa levar pelo acaso, Abel entra na onda dessas mulheres que o fascinam e os desdobramentos são, no mínimo, inusitados.

Esse jogo romântico se revela apenas instrumento de um enredo sofisticado, que esmiúça a dificuldade desse homem em encontrar a si mesmo e tomar as rédeas da própria vida. É o pequeno Joseph, e suas teorias conspiratórias, que desperta em Abel talvez o sentimento mais profundo e transformador. A cena final é uma preciosidade.

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Quem Você Pensa Que Sou/Celle que vous croyez

Há algo na tristeza da personagem de Juliette Binoche em Quem Você Pensa que Sou que cala fundo no público feminino, principalmente em mulheres mais maduras. Claire tem 50 anos, é professora de literatura, divorciada, mãe de dois filhos e tem uma relação quente com Ludovic (Guillaume Gouix), que é bem mais jovem. Nas cenas iniciais, sua fragilidade emocional aflora quando o rapaz faz pouco dela e da relação.

Nessa adaptação do romance homônimo de Camille Laurens, a narrativa se divide entre as sessões de Claire na psicanalista, Catherine (Nicole Garcia), e os acontecimentos que a levaram até ali. A começar pelo perfil falso no Facebook, em que se apresenta como uma moça de vinte e poucos anos, e assim engata um affair virtual – e por telefone – com Alex (François Civil, de Amor à Segunda Vista). O eleito é ninguém menos que o melhor amigo de Ludovic.

Repare, porém, que tudo o que se vê é do ponto de vista da protagonista, logo a sua forma de enxergar a realidade. Esse detalhe gera desconfiança e interesse no espectador. Claro que a farsa se complica quando Alex insiste para que se encontrem pessoalmente. Aos poucos, Claire desabafa com Catherine sobre os verdadeiros gatilhos de seu comportamento errante. E aí a gente sofre com ela.

Quem Você Pensa Que Sou se transveste de estripulia romântica para retratar a dor de alguém obrigado a recomeçar depois de uma grande provação. Claire precisa resgatar o amor próprio, e não é fácil. Em outra estupenda atuação, Juliette Binoche fala do envelhecer com honestidade, uma certa desilusão e uma revolta absolutamente autêntica.

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Através do Fogo/Sauver ou Périr

Por FÁTIMA GIGLIOTTI

Pierre Niney (Frantz, Promessa ao Amanhecer) é um dos mais talentosos atores franceses de sua geração. Aos 21 anos, foi o mais jovem a entrar para a prestigiada companhia de teatro Comédie-Française, a famosa “casa de Molière”, da qual se desligou cinco anos depois para dedicar-se ao cinema. Foi também o mais jovem intérprete a receber o prêmio César de melhor ator, por seu trabalho no badalado Yves Saint Laurent.

Agora, para interpretar o bombeiro Franck Pasquier em Através do Fogo, Niney praticamente viveu quatro meses no Corpo de Bombeiros de Paris, ganhou dez quilos de músculos para a primeira parte do filme, e depois perdeu-os, e mais alguns outros, para a etapa final. Além disso, entrevistou e conviveu com vítimas de queimaduras graves para compor seu protagonista, que passa do céu ao inferno, literalmente, numa fração de segundo.

Tudo na vida de Franck sempre foi perfeito. Apesar da ausência do pai, tem mãe e irmãos amorosos. Na sua casa no quartel dos bombeiros em Paris (na França, eles têm treino militar), a amada esposa Cécile (Anaïs Demoustier, de Os Dois Filhos de Joseph) cuida das gêmeas recém-nascidas. A promoção para chefe dos bombeiros completa a feliz vida da família, até vir tudo abaixo com o gravíssimo acidente sofrido por Franck no primeiro atendimento como chefe: para salvar dois homens da equipe, ele fica à beira da morte. Após mais de dois anos no hospital em tratamento, com o rosto desfigurado, a fala e alguns movimentos comprometidos, ele precisa encontrar forças e motivos para recomeçar.

O diretor e corroteirista Frédéric Tellier não economiza no melodrama, mas o faz com qualidade técnica e com o vigor de seu elenco. Conta, sobretudo, com a cumplicidade de Niney, que brilha mesmo nas sequências mais clichês do gênero. Para enobrecer a jornada de seu herói, como se fosse necessário, Tellier apresenta a rotina dos bombeiros, a rigorosa disciplina, o empenho missionário. Utiliza o mesmo realismo no doloroso tratamento físico e no dilaceramento emocional e mental de Franck. É na condução do relacionamento de Franck e Céline face a tanta dor e tantos desafios, entretanto, que o diretor acerta o tom e torna seu filme uma comovente história de superação.   

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