Revelação do suspense espanhol

O que Durante a Tormenta e Um Contratempo têm em comum, além do gênero suspense? Para começar, a direção e o roteiro de Oriol Paulo (O Corpo) e suas idas e vindas na história ou no tempo dos personagens. Além disso, a ótima fotografia de Xavi Giménez e a trilha sonora enigmática de Fernando Velázquez, ou ainda a presença da atriz Ana Wagener. E o mais importante: o boca-a-boca nas redes que os transformaram em grandes sucessos da Netflix. Saiba por que esses dois suspenses estão dando o que falar e despertando uma bem-vinda curiosidade sobre a produção do cinema espanhol disponível em streaming.

Durante a Tormenta/Durante La Tormenta

No dia 9 de março de 1989, o mundo celebrou a queda do Muro de Berlim e a unificação da Alemanha. Na Espanha, uma tempestade elétrica de 72 horas de duração foi cenário da morte do garoto Nico, por atropelamento, logo após descobrir que o vizinho havia assassinado a esposa. Agora, uma tempestade semelhante paira no céu, 25 anos depois, e provoca breves apagões na mesma casa em que Nico morou, para onde a enfermeira Vera (Adriana Ugarte, de Julieta), seu marido David (Álvaro Morte, da série La Casa de Papel) e a filhinha do casal, Gloria, acabam de se mudar.

David encontra, num armário da casa, uma televisão antiga e algumas fitas gravadas de Nico e sua guitarra, e decide mostrá-las para Gloria. De repente, a televisão começa a exibir o sinal analógico da cobertura da queda do Muro. Durante a noite, Vera é acordada pela tormenta e pelo barulho da televisão. Pela tela, faz contato com Nico. Mesmo assustada, ela consegue prevenir o garoto e espera ter evitado a morte dele.

Mas, no dia seguinte, a vida de Vera não é mais a mesma. Ela agora é neurocirurgiã, não tem família, não mora na mesma casa. Com a ajuda do inspetor Leyra (Chino Darín, de O Anjo), ela sabe que tem até o final da tempestade para descobrir o que aconteceu com Nico e recuperar a filha e a vida que perdeu.

O forte do diretor Oriol Paulo não é a originalidade, já que a história invoca filmes como Alta Frequência, Efeito Borboleta e mesmo a trilogia De Volta para o Futuro, e outras referências estão salpicadas ao longo da produção. Ele também não se aprofunda muito na composição dos personagens, meras peças do enigma que se propõe a apresentar. Mas sabe entrelaçar bem as estratégias narrativas dos gêneros e amalgamar elementos da ficção científica – rara no cinema espanhol –, do suspense, policial e drama para gerar curiosidade e tensão crescente.

Cheio de climas e de reviravoltas, Durante a Tormenta tem ainda um ótimo elenco e qualidade técnica, sobretudo a paleta de cores e a iluminação da fotografia de Xavi Giménez. Há na Internet versões sobre a interpretação da alteração da linha do tempo proposta por Oriol Paulo no filme, algumas até filosóficas. Não é para tanto, embora pudesse ser interessante imaginar o que seria do planeta sem a simbólica queda do Muro. Política, no entanto, não é a praia do diretor. Divertir, sim. Missão cumprida.

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Um Contratempo/Contratiempo

Da estreia no cinema com o elogiado O Corpo, de 2012, a Um Contratempo, de 2016, foi o que bastou para transformar o diretor Oriol Paulo em um queridinho do suspense. O inesperado desempenho do segundo filme do diretor nas disputadas bilheterias chinesas, que fizeram de Um Contratempo o maior sucesso internacional do cinema espanhol de 2017, certamente contribuiu para seu reconhecimento.

O cineasta tem domínio da linguagem do suspense. Faz de uma claustrofóbica sala de visitas e do embate entre o empresário bem-sucedido Adrián (Mario Casas, de O Bar) e a experiente advogada Virginia (Ana Wagener, de Biutiful), sobre um suposto homicídio, o ponto de partida e a linha de chegada de seu filme. Entre os dois, recheia a tela de versões e pistas num exercício narrativo de palavras, imagens e sugestões que conta com a ambiguidade dos personagens como um suporte essencial, como reza a cartilha do gênero.

Adrián acaba de receber o prêmio de empresário do ano, é bem casado e pai de uma filha adorável. Tem também um caso com a charmosa fotógrafa Laura (Bárbara Lennie, de Todos Já Sabem). Na volta de um encontro com a amante, eles sofrem um acidente, e o motorista do outro carro morre no local. O casal decide se livrar do corpo da vítima, para evitar as evidentes complicações do acidente, e assim é feito. Meses depois, Adrián e Laura se reúnem novamente num hotel rural para pagar US$ 100 mil a um chantagista. Ela acaba morta. Ele, acusado do assassinato. Virginia é a advogada encarregada de preparar Adrián para o julgamento, de alertá-lo sobre a importância dos detalhes em sua versão dos fatos.

São justamente esses detalhes – e os personagens – que Oriol Paulo vai manipulando, às claras, quase até à exaustão, para abrir e encenar as várias possibilidades de combinação, de autoria e de intenção dos fatos. Bem acompanhado na produção, com sofisticada fotografia e trilha sonora pulsante, conta também com um ótimo elenco. Cerebral em demasia, embora bem articulado, o filme pode surpreender. Mas quem é fã dos clássicos do suspense, de Alfred Hitchcock e Agatha Christie, ou seus herdeiros, como Brian De Palma, e seguir a proposta do diretor, de olho nos detalhes, talvez não se surpreenda tanto assim.

P.S. - Um Contratempo me deu vontade de rever Testemunha de Acusação e seu quinteto sagrado – Billy Wilder na direção, Agatha Christie no roteiro, e Tyrone Power, Marlene Dietrich e Charles Laughton no elenco. Só por isso, já valeu.  

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