Anatomia de uma Queda

Que grande bobagem fez a França ao não escolher o vencedor da Palma de Ouro em Cannes como seu representante no Oscar de filme internacional. Anatomia de uma Queda era tiro certo, mas preferiram jogar confete em seus astros consagrados Juliette Binoche e Benoît Magimel, protagonistas do drama gourmet O Sabor da Vida, que ficou fora do páreo. Enquanto isso, a alemã Sandra Hüller vive momento de glória com duas atuações magistrais, em Anatomia de uma Queda e Zona de Interesse. 

Escrito pela diretora Justine Triet em parceria com o marido, Arthur Harari, o roteiro premiado com o Oscar vai além da autópsia de uma relação que parecia morta antes mesmo da suspeita morte do marido que leva a mulher ao tribunal. A cirurgia maior encontra-se no tecido das múltiplas narrativas. A genialidade do texto está na veia lírica que aguça os sentidos para além do fato: homem morto em queda da janela da própria casa. 

Essa é uma família que não fala a mesma língua. Mais, é um clã literário, formado por dois escritores em patamares distintos da carreira. Sandra (Sandra Hüller) é alemã, Samuel (Samuel Theis) é francês. Eles se comunicam em inglês. Com a língua pátria de lado, a essência fica submersa na tradução. O filho, Daniel (o incrível Milo Machado Graner), perambula pelas três línguas. É ele quem encontra o corpo do pai e sua busca por explicações esbarra na falta de um sentido, a visão, perdida quase na totalidade em um acidente.

Na exposição sem censura da intimidade do casal durante o julgamento, sabemos que Samuel se culpava pela perda da visão de Daniel em um evento que, talvez, poderia ter sido evitado. Ele faltou a um compromisso com o filho para focar no livro que nunca terminou. Frustração de um lado, êxito e cobrança no outro. Sandra é autora celebridade, uma máquina de escrever. Tornam-se públicos a bissexualidade dela, o complexo de inferioridade dele, a disparidade de interesses e ideais. Não é simples encontrar o amor nessa equação, mas ele está lá, na forma que conseguiu tomar. A anatomia é de várias quedas, dos tombos que cada membro dessa família leva da vida.

No teatro jurídico, o trajeto da janela ao chão conta uma história. Com a ajuda de um advogado amigo do casal (Swann Arlaud), Sandra conta outra história, e a acusação apresenta a sua versão. Difícil “ler” personagens tão ambíguos. É Daniel, porém, na acelerada maturidade que o sofrimento lhe impõe, quem assume o papel detetivesco. Com a tonelada de conteúdo que absorve no julgamento, ele empreende uma investigação para, assim, criar a sua narrativa da morte do pai. Já o espectador, a certa altura, percebe que também acionou sua criatividade atrás de uma solução para o mistério. Entre a realidade e a ficção, qual a verdade, afinal?

Ficha Técnica

Assista Agora!