Destaques da décima edição do Festival Varilux de Cinema Francês esse três filmes têm em comum o tema do abuso sexual e a coragem das vítimas face a essa agressão brutal, inominável, indelével. Infelizmente, todos eles são baseados em histórias reais.
Em Inocência Roubada, a bailarina Andréa Bescond escreve e dirige sua história autobiográfica de abuso infantil com dor, ira e arte. Já o grande diretor francês François Ozon preferiu recriar a abominável trajetória que levou ao julgamento de um cardeal e um padre, respectivamente, por negligência e abuso sexual de dezenas de garotos em Graças a Deus. E a jovem diretora Eva Husson debruçou-se sobre os horrores da guerra do Curdistão, em que mulheres reféns são violadas e vendidas, e do batalhão de combatentes exclusivamente feminino que dá nome ao filme, Filhas do Sol.
Drama

Inocência Roubada/Les Chatouilles
Vencedor dos prêmios César de roteiro adaptado e atriz aoadjuvante (Karine Viard), Inocência Roubada foi adaptado do espetáculo-solo autobiográfico, vencedor do prêmio Molière, escrito e coreografado por Andréa Bescond, e dirigido por Eric Métayer. No filme, eles assinam em parceria a autoria do roteiro e a direção.
Na estrutura e no registro das consequências dolorosas do abuso infantil, Inocência Roubada tem paralelismos com O Conto, de Jennifer Fox, também um relato autobiográfico. Ambos exploram o vaivém no tempo da narrativa, com as protagonistas invadindo seu passado, embaralhando o real e a fantasia, como se fosse possível realizar o desejo de que tal atrocidade não tivesse acontecido ou apagá-la da memória. Mas aconteceu, lhes roubou a inocência e muito, muito mais.
Odete (Andréa Bescond) é bailarina de dança moderna, tem uma vida de excessos e uma personalidade irascível. Ela revela para a analista (Carole Franck) que foi vítima de abuso infantil aos 8 anos. O algoz foi Gilbert (Pierre Deladonchamps), melhor amigo de seus pais (Clovis Cornillac e Karin Viard), cuja negligência e ausência os levaram à cegueira inaceitável ao apelo silencioso e angustiado da pequena Odete (Cyrille Mairesse). Levará algum tempo e várias sessões de terapia para a trintona Odete revisitar e se (re)apropriar de sua história.
O título original da peça é As Cócegas ou A Dança da Cólera (Les Chatouilles ou La Dance de la Colère). São duas danças da atriz que abrem e fecham o filme, e é a dança de movimentos bruscos, dolorosos, o território de expressão e de liberdade de Odete das “cócegas” criminosas da infância. É com a palavra, muita coragem e sua arte, no entanto, que ela revisita o passado, conta a verdade, denuncia o abusador e se abre para o amor, não necessariamente nesta ordem.
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Ficha Técnica
TÃtulo: Inocência Roubada/Les Chatouilles
Direção: Andréa Bescond, Eric Métayer
Duração: 103 minutos
PaÃs de Produção/Ano: França, 2018
Elenco: Andréa Bescond, Karin Viard, Clovis Cornillac, Pierre Deladonchamps, Grégory Montel, Carole Franck, Cyrille Mairesse
Distribuição: A2
Drama

Graças a Deus/Grâce à Dieu
O cineasta e roteirista François Ozon (Dentro de Casa) é um craque da linguagem cinematográfica, em qualquer gênero que escolher para exercitar sua arte. Em Graças a Deus, ele realizou um drama de suspense de primeira linha com roteiro e produção irretocáveis, performances brilhantes de seu primoroso elenco, tudo a serviço de denunciar mais um caso gritante de abusos sexuais de padres, dessa vez na França. Do Festival de Cinema de Berlim 2019, o filme recebeu o Grande Prêmio do Júri, merecido.
Ozon se inspirou nos fatos que levaram ao julgamento do cardeal francês Philippe Barbarin pela negligência com os vários relatos de abuso infantil de meninos pelo padre Bernard Preynat, em diversas paróquias da região de Lyon, entre o final dos anos 1980 e início da década de 1990. O cineasta entrevistou vítimas e pesquisou largamente o caso. Alterou o nome das vítimas, mas manteve o dos acusados.
O filme é construído em três atos. No primeiro, Alexandre (Melvil Poupaud, de À Beira Mar), executivo, bem casado, pai de cinco filhos, católico, discreto e ponderado, vê fotos do Padre Preynat (Bernard Verley, de Rodin) com crianças em 2014, e decide denunciá-lo ao Cardeal Barbarin (François Marthouret), chefe da Igreja Católica na região. Cansado de respostas evasivas, decide levar a denúncia à polícia.
É no segundo ato, com o ateu e raivoso François (François Marthouret, de Custódia), chamado a depor, e seu amigo médico Gilles (Éric Caravaca, de Amante por um Dia), também abusado, que o caso vai a público, e revela dezenas de novas vítimas, incluindo o frágil e perdido Emmanuel (Swann Arlaud, de A Vida de uma Mulher) - terceiro ato. Os quatro lideram um movimento de denúncia e apoio às vítimas.
Houve quem chamasse o filme de Spotlight – Segredos Revelados (2015) à francesa, mas a comparação talvez se sustente apenas no tema e no ritmo de thriller. Com todo seu talento e uma sensibilidade ímpar, Ozon prefere fazer um retrato humano e dilacerante das consequências de uma violação tão atroz, ao mesmo tempo que destila indignação não apenas contra os acusados e a instituição à qual pertencem, mas também contra estigmas sociais e familiares que ainda perpetuam o silêncio e a impunidade.
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Ficha Técnica
TÃtulo: Graças a Deus/Grâce à Dieu
Direção: François Ozon
Duração: 137 minutos
PaÃs de Produção/Ano: França/Bélgica, 2018
Elenco: Melvil Poupaud, Denis Ménochet, Swann Arlaud, Éric Caravaca, François Marthouret, Bernard Verley, Josiane Balasko, Martine Erhel, Hélène Vincent, Aurélia Petit
Distribuição: Califórnia
Drama Guerra

Filhas do Sol/Les Filles du Soleil
O Curdistão iraquiano, a noroeste do país, próximo da fronteira com a Síria, é habitado predominantemente por yazidis, minoria étnica curda. Em agosto de 2014, a região de Sinjar foi atacada por extremistas muçulmanos, que fizeram cerca de 7 mil reféns. Cerca de 500 mil civis fugiram, desalojados de suas terras. A diretora e roteirista Eva Husson (Bang Gang - Uma História de Amor Moderna) inspirou-se nos fatos ocorridos entre agosto de 2014 e novembro de 2015, e situa seu segundo longa em meio à guerra do Curdistão.
Bahar (a talentosa atriz franco-iraniana Golshifteh Farahani, de Amigos para Sempre) é a comandante do batalhão Filhas do Sol, composto de mulheres curdas. Mathilde (Emmanuelle Bercot, de Meu Rei) é uma correspondente de guerra francesa, que perdeu o marido, também repórter, na Líbia. As duas se encontram três dias antes da arriscada ação do batalhão feminino para retomar a cidade de Gordiene, em que Bahar foi capturada, viu o marido ser assassinado, e espera reencontrar o filho.
Filhas do Sol realiza um jogo narrativo de dois tempos. A tenebrosa história de Bahar – de advogada a refém, vítima de inúmeros estupros, vendida e revendida como escrava sexual, a comandante de guerra - surge em flashbacks, enquanto o batalhão planeja e ocupa Gordiene, sempre sob a câmera e o olhar atento de Mathilde. Ela também, submetida à dura vida militar do batalhão, conta sobre sua vida a Bahar, e uma inusitada amizade as aproxima.
A estreia internacional do filme na Seleção Oficial do Festival de Cannes 2018 não foi bem acolhida, injustamente. Para além da competente fotografia, edição ágil, produção verossímil, Eva Husson não só evidenciou internacionalmente um violento conflito que ainda faz vítimas, como deu voz às corajosas mulheres que perderam suas famílias, sobreviveram a inimagináveis abusos, agressões e tem sido decisivas na luta pela causa curda.
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Ficha Técnica
TÃtulo: Filhas do Sol/Les Filles du Soleil
Direção: Eva Husson
Duração: 115 minutos
PaÃs de Produção/Ano: Bélgica/França/Georgia/SuÃça, 2018
Elenco: Golshifteh Farahani, Emmanuelle Bercot, Zübeyde Bulut, Sinama Alievi, Mari Semidovi
Distribuição: Caliórnia